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Entretanto Cecília e sua prima tinham o costume de banhar-se vestidas com um trajo feito de ligeira estamenha que ocultava inteiramente sob a cor escura as formas do corpo, deixando-lhes os movimentos livres para nadarem.

Mas Peri entendia que apesar disto seria uma profanação consentir que um olhar de quem quer que fosse visse a senhora no seu trajo de banho; nem mesmo o dele que era seu escravo, e por conseguinte não podia ofendê-la, a ela que era o seu único deus.

Enquanto porém o índio mantinha assim pela certeza de sua vista rápida, e pela projeção das suas flechas esse círculo impenetrável para quem quer que fosse, não deixava de olhar com uma atenção escrupulosa a corrente e as margens do rio.

O peixe que beijava a flor da água, e que podia ir ofender a moca; uma cobra verde inocente que se enroscava pelas folhas dos aguapés; um camaleão que se aquecia ao sol fazendo cintilar o seu prisma de cores brilhantes; um sagüi branco e felpudo que se divertia a fazer caretas maliciosas suspendendo-se pela cauda ao galho de uma árvore; tudo quanto podia ir causar um susto à moça, o índio fazia fugir, se estava longe, e se estava perto, pregava o animal imóvel sobre o tronco ou sobre o chão.

Se um ramo arrastado pela corrente passava, se um pouco do limo das águas despegava-se da margem pedregosa do rio, se o fruto de uma sapucaia pendida sobre o Paquequer estalava prestes a cair, o índio, veloz como o tiro do seu arco, lançava-se e retinha o coco no meio da sua queda, ou precipitava-se na água e apanhava os objetos que boiavam.

Cecília podia ser ofendida pelo tronco que a correnteza carregava, pela fruta que caía; podia assustar-se com o contato do limo julgando ser uma cobra; e Peri não perdoaria a si mesmo a mais leve mágoa que a moça sofresse por falta de cuidado seu.

Enfim ele estendia ao redor dela uma vigilância tão constante e infatigável, uma proteção tão inteligente e delicada, que a moça podia descansar, certa de que, se sofresse alguma coisa, seria porque todo o poder do homem fora impotente para evitar.

Página 42

Eis pois a razão por que Cecília recomendava a Peri que estivesse quieto e sossegado; é verdade que ela sabia que essa recomendação era sempre inútil, e que o índio faria tudo para que uma abelha sequer não viesse beijar os seus lábios vermelhos confundindo-os com uma flor de pequiá.

Quando as duas mocas atravessaram a esplanada, Álvaro passeava junto da escada.

Cecília saudou de passagem com um sorriso ao jovem cavalheiro; e desceu ligeiramente seguida por sua prima.

Álvaro que tinha procurado ler-lhe nos olhos e no rosto o perdão de sua loucura da véspera, e nada havia percebido que acabasse com o seu receio, quis seguir a moça, e falar-lhe.

Voltou-se para ver se alguém estava ali que reparasse no que ia fazer, e deu com o italiano que a dois passos dele o olhava com um dos seus sorrisos sarcásticos.

Bom dia, sr. cavalheiro.

Os dois inimigos trocaram um olhar que se cruzara como laminas de aço que rogassem uma na outra.

Nesse momento Peri se aproximava lentamente deles, carregando uma das pistolas que Cecília lhe havia dado há alguns minutos.

O índio parou, e com um ligeiro sorriso de uma expressão indefinível tomou as pistolas pelo cano e apresentou-as uma a Álvaro e outra a Loredano.

Ambos compreenderam o gesto e o sorriso; ambos sentiram que tinham cometido uma imprudência, e que o espírito perspicaz do selvagem havia lido nos seus olhos um ódio profundo, e talvez a causa desse ódio.

Voltaram-se fingindo não ter visto o movimento.

Peri levantou os ombros e metendo as pistolas na cinta passou entre eles com a cabeça alta, o olhar sobranceiro, e acompanhou sua senhora.

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XI NO BANHO

Descendo a escada de pedras da esplanada Cecília perguntava à sua prima:

— Dize-me uma coisa, Isabel; por que é que tu não falas ao Sr. Álvaro? Isabel estremeceu.

— Tenho reparado, continuou a menina, que nem mesmo respondes à cortesia que ele nos faz.

— Que ele te faz, Cecília, replicou a moça docemente.

— Confessa que não gostas dele. Tens-lhe antipatia?

A moça calou-se.

— Não falas?... olha que então vou pensar outra coisa! continuou Cecília galanteando.

Isabel empalideceu; e levando a mão ao coração para comprimir as pulsações violentas, fez um esforço supremo e arrancou algumas palavras que pareciam queimar-lhe os lábios:

— Bem sabes que o aborreço!...

Cecília não viu a alteração da fisionomia de sua prima, porque tendo chegado à baixa nesse momento, esquecera a conversa, e começara a brincar com uma alegria infantil sobre a relva.

Mas ainda que visse a perturbação da moça e o choque que ela tinha sentido, decerto atribuiria isso a qualquer outro motivo, menos ao verdadeiro.

A afeição que tinha a Álvaro lhe parecia tão inocente, tão natural, que nunca se lembrara que devia um dia passar daquilo que era, isto é, de um prazer que fazia sorrir, e de um enleio que fazia corar.

Esse amor pois, se era amor, não podia conhecer o que se passava na alma de Isabel; não podia compreender a sublime mentira que os lábios da moça acabavam de proferir.

Quanto a Isabel, temendo trair o seu segredo, tinha arrancado do seu coração cheio de amor, essa palavra de ódio, que para ela era quase uma blasfêmia.

Mas antes isso do que revelar o que se passava em sua alma; esse mistério, essa ignorância que envolvia o seu amor, e o escondia a todos os olhos, tinha para ela uma voluptuosidade inexprimível.

Podia assim fitar horas e horas o moço, sem que ele o percebesse, sem o incomodar talvez com a prece muda do olhar suplicante; podia rever-se em sua alma sem que um sorriso de desdém ou de zombaria a fizesse sofrer.

O sol vinha nascendo.

O seu primeiro raio espreguiçava-se ainda pelo céu anilado, e ia beijar as brancas nuvenzinhas que corriam ao seu encontro.

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