— Peri!...
Ele beijou as pistolas ainda fumegantes e ia responder, quando a dois passos surgiu de entre a touça o vulto de uma índia que sumiu-se ligeiramente no mato.
Enfiou um olhar pela fresta e julgando Cecília já fora do banho e em lugar seguro, lançou-se atrás da índia a que já lhe levava um grande avanço.
Página 46
Uma larga fita vermelha que escapava da ferida tingia a sua alva túnica de algodão; Peri sentiu-se vacilar de repente e apertou com desespero o coração como para reter o sangue que espadanava.
Foi um momento de luta terrível entre o espírito e a matéria, entre a força da vontade e o poder da natureza.
O corpo desfalecia, os joelhos se dobravam, e Peri erguendo os braços como para agarrar-se à cúpula das árvores, estorcendo os músculos para manter-se em pó, lutava debalde com a fraqueza que se apoderava dele.
Debateu-se um momento contra a poderosa gravitação que o vergava para a terra; mas era homem, e tinha de ceder à lei da criação. Entretanto sucumbindo o valente índio resistia sempre; e vencido parecia querer lutar ainda.
Não caiu, não; quando a força lhe faltou de todo, foi-se lentamente retraindo e tocou a terra com os joelhos.
Mas então lembrou-se de Cecília, de sua senhora a quem tinha de vingar, e para quem devia viver a fim de salvá-la, e de velar sobre ela. Fez um esforço supremo: contraindo-se conseguiu reerguer-se; deu dois passos vacilantes, girou no ar e foi bater de encontro a uma árvore com a qual se abraçou convulsivamente.
Era uma cabuíba de alta grandeza que se elevava pelo cimo da floresta, e de cujo tronco cinzento borbulhava um óleo cor de opala que desfiava em lágrimas.
O suave aroma que recendia dessas gotas fez o índio abrir os olhos amortecidos, que se iluminaram de uma brilhante irradiação de felicidade. Colou ardentemente os lábios no tronco, e sorveu o óleo, que entrou no seu seio como um bálsamo poderoso.
Sentiu-se renascer
Estendeu o óleo sobre a ferida, estancou o sangue e respirou.
Estava salvo.
Página 47
XII A ONÇA
Voltemos a casa.
Loredano, depois do movimento de Peri, tinha acompanhado com os olhos a Álvaro, o qual seguia pela borda da esplanada para ver Cecília que dirigia-se ao rio.
Apenas o moço dobrou o ângulo que formava o rochedo, o italiano desceu a ladeira rapidamente, e meteu-se pelo mato.
Poucos instantes se tinham passado quando Rui Soeiro apareceu na esplanada, ganhou a baixa, e entranhou-se por sua vez na floresta.
Bento Simões imitou-o com pequeno intervalo, e guiando-se por alguns talhos frescos que viu nas árvores, tomou a mesma direção.
O pátio ficou deserto.
Decorreu cerca de meia hora: a casa tinha aberto todas as suas janelas para receber o ar paro da manhã, e as emanações saudáveis dos campos; um ligeiro penacho de fumo alvadio coroava o tubo da chaminé, anunciando que os trabalhos caseiros haviam começado.
De repente ouviu-se um grito no interior da habitação; todas as portas e janelas do edifício fecharam-se com um estrépito e uma rapidez, como se um inimigo caísse de assalto.
Pela fresta de uma janela entreaberta apareceu o rosto de D. Lauriana, pálida, e com os cabelos sem estarem riçados, o que era uma coisa extraordinária.
— Aires Gomes!... O escudeiro!... Chamem Aires Gomes! Que venha já! gritou a dama. A janela fechou-se de novo com o ferrolho.
A personagem que já conhecemos pouco tardou, e atravessando a esplanada dirigiu-se à casa, sem compreender a razão por que àquela hora com o sol alto ainda toda a habitação parecia dormir.
— Fizestes-me chamar! disse ele chegando-se à janela.
— Sim; estais armado? perguntou D. Lauriana por detrás da porta.
— Tenho a minha espada; mas que novidade há?
A fisionomia decomposta de D. Lauriana apareceu de novo na fresta da janela.
— A onça!... Aires Gomes! A onça!...
O escudeiro deu um salto prodigioso julgando que o animal de que se falava ia saltar-lhe ao cangote, e sacou da espada pondo-se em guarda.
A dama vendo o movimento do escudeiro supôs que a onça atirava-se à janela, e caiu de joelhos murmurando uma oração ao santo advogado contra as feras.
Alguns minutos se passaram assim; D. Lauriana rezando; e Aires Gomes rodando no pátio como um corrupio, com receio de que a onça não o atacasse pelas costas, o que além de ser uma vergonha para um homem de armas da sua têmpera, seria um pouco desagradável para sua saúde.
Por fim, de pulo em pulo o escudeiro conseguiu ganhar de novo a parede do edifício e encostar-se nela, o que o tranqüilizou completamente; pela frente não havia inimigo que o fizesse pestanejar.
Página 48
Então batendo com a folha da espada na ombreira da janela disse em voz alta:
— Explicar-me-eis que onça é essa de que falais, Sra. D. Lauriana; ou estou cego, ou não vejo aqui sombra de semelhante animal.