E de fato apresentou com as cores mais negras, e com a ênfase mais dramática, não só o risco iminente que na sua opinião tinha corrido a casa inteira, mas os perigos que ameaçavam ainda a paz e sossego da família.
Referiu que, se por um milagre a sua caseira não tivesse há coisa de uma hora chegado a esplanada e visto o índio fazendo partes diabólicas com o tigre ao qual naturalmente ensinava a maneira de penetrar na casa, todos àquela hora estariam defuntos.
Cecília empalideceu, lembrando-se do descuido e alegria com que atravessara o vale e se banhara; Isabel conservou-se calma, mas seus olhos brilhavam.
— Assim, concluiu peremptoriamente D. Lauriana, não é concebível que continuemos com semelhante praga em casa.
— Que dizeis, minha mãe? exclamou Cecília assustada: pretendeis mandá-lo embora?
— Sem dúvida: essa casta de gente, que nem gente é, só pode viver bem nos matos.
— Mas ele nos ama tanto! Tem feito tanto por nós, não é verdade, meu pai? disse a menina voltando-se para o fidalgo.
D. Antônio respondeu à sua filha por um sorriso que a sossegou:
— Vós ralhareis com ele, meu pai; eu ficarei agastada, continuou Cecília, e ele se emendará e não fará mais outra.
— E a de há pouco? replicou Isabel dirigindo-se a Cecília.
D. Lauriana, que via a sua causa mal parada depois da chegada das moças, apesar da repugnância que sentia por Isabel, conheceu que tinha nela um aliado; e dirigiu-lhe a palavra, o que sucedia uma vez por semana.
— Chega-te, menina; o que é que dizes ter acontecido há pouco?
— É também um perigo que correu Cecília.
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— Qual! minha mãe; foi mais susto de Isabel do que outra coisa.
— Susto, sim; mas pelo que vi...
— Conta-me isso; e tu, Cecília, fica ai sossegada.
A menina pelo respeito que tinha a sua mãe não se animou a dizer mais uma palavra; porém aproveitando-se do movimento que fez D. Lauriana ao voltar-se para ouvir a Isabel, abanou a cabeça à sua prima pedindo-lhe que nada dissesse.
A moça fez que não viu o gesto e respondeu à sua tia:
— Cecília estava se banhando e eu tinha ficado à beira do rio: daí a algum tempo vejo Peri que passava ao longe pelo galho de uma árvore. Ele sumiu-se, e de repente uma seta partida daquele lugar veio cair a dois passos de minha prima!
— Ouça cá, Sr. Mariz! exclamou D. Lauriana; ouça as estripulias do capeta!
— No mesmo instante, continuou Isabel, ouvimos dois tiros de pistola, que ainda mais nos assustaram, porque decerto foram apontados também para nosso lado.
— Senhor Deus! É pior do que uma judiaria! Mas quem deu pistolas a esse bugio?
— Fui eu, minha mãe, respondeu timidamente Cecília.
— Melhor seria que rezasses as tuas contas. Era bem-feito que com elas mesmo... Senhor Deus! perdoai-me!
D. Antônio tinha ouvido as palavras de Isabel, apesar de conservar-se a alguma distancia; o rosto do fidalgo tomara uma expressão grave.
Fez um ligeiro aceno a Cecília, e afastou-se com ela em ar de quem passeava pela esplanada:
— O que diz tua prima é verdade?
— É, meu pai; mas estou certa que Peri não o fez por maldade.
— Contudo, replicou o fidalgo, isto pode renovar-se; por outro lado tua mãe está atemorizada; assim, o melhor é afastá-lo.
— Ele vai sentir muito!
— E eu e tu também, porque o estimamos; mas não seremos ingratos; eu pagarei a tua e a minha divida de gratidão; deixa isto ao meu cuidado.
— Sim, meu pai! exclamou a menina com um olhar úmido de reconhecimento e de admiração: Sim! Vós que sabeis compreender tudo que é nobre!
— Como tu, minha Cecília! respondeu o fidalgo acariciando-a.
— Oh! eu aprendi no vosso coração, e nas vossas menores ações.
D. Antônio abraçou-a.
— Ah! tenho uma coisa a pedir-vos!
— Dize: há muito que não me pedes nada, e eu já tenho queixa disso.
— Mandareis conservar este animal. Sim?
— Desde que o desejas...