— Tudo é o mesmo, desde que te causa prazer, senhora.
— Mas então, exclamou a menina com um assomo de impaciência, se eu te pedisse aquela nuvem?...
E apontou para os brancos vapores que passavam ainda envolvidos nas sombras pálidas da noite.
— Peri ia buscar.
— A nuvem? perguntou a moça admirada.
— Sim, a nuvem.
Cecília pensou que o índio tinha perdido a cabeça; ele continuou: Página 40
— Somente como a nuvem não é da terra e o homem não pode tocá-la, Peri morria e ia pedir ao Senhor do céu a nuvem para dar a Ceci.
Estas palavras foram ditas com a simplicidade com que fala o coração.
A menina que um momento duvidara da razão de Peri, compreendeu toda a sublime abnegação, toda a delicadeza de sentimento dessa alma inculta.
A sua fingida severidade não pôde mais resistir; deixou pairar nos seus lábios um sorriso divino.
— Obrigada, meu bom Peri! Tu és um amigo dedicado; mas não quero que arrisques tua vida para satisfazer um capricho meu; e sim que a conserves para me defenderes como já fizeste uma vez.
— Senhora, não está mais zangada com Peri?
— Não; apesar de que devia estar; porque Peri ontem fez sua senhora afligir-se cuidando que ele ia morrer.
— E Ceci ficou triste? exclamou o índio.
— Ceci chorou! respondeu a menina com uma graciosa ingenuidade.
— Perdoa, senhora!
— Não só te perdôo, mas quero também fazer-te o meu presente.
Cecília correu ao seu quarto e trouxe o rico par de pistolas que havia encomendado a Álvaro.
— Olha! Peri não desejava ter umas?
— Muito!
— Pois aqui tens! Tu não as deixarás nunca porque são uma lembrança de Cecília, não é verdade?
— Oh! o sol deixará primeiro a Peri, do que Peri a elas.
— Quando correres algum perigo, lembra-te que Cecília as deu para defenderem e salvarem a tua vida.
— Por que é tua, não é, senhora?
— Sim, porque é minha, e quero que a conserves para mim.
O rosto de Peri irradiava com o sentimento de um gozo imenso, de uma felicidade infinita; meteu as pistolas na cinta de penas e ergueu a cabeça orgulhoso, como um rei que acabasse de receber a unção de Deus.
Para ele essa menina, esse anjo louro, de olhos azuis, representava a divindade na terra; admirá-la, fazê-la sorrir, vê-la feliz, era o seu culto; culto santo e respeitoso em que o seu coração vertia os tesouros de sentimentos e poesia que transbordavam dessa natureza virgem.
Isabel entrou no jardim; a pobre menina tinha velado toda a noite, e o seu rosto parecia conservar ainda os traços de algumas dessas lágrimas ardentes que escaldam o seio e requeimam as faces.
A moça e o índio nem se olharam; odiavam-se mutuamente; era uma antipatia que começara desde o momento em que se viram, e que cada dia aumentava.
— Agora, Peri, Isabel e eu vamos ao banho.
— Peri te acompanha, senhora?
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— Sim, mas com a condição de que Peri há de estar muito quieto e sossegado.
A razão por que Cecília impunha esta condição, só podia bem compreender quem tivesse assistido a uma das cenas que se passavam quando as duas moças iam banhar-se, o que sucedia quase sempre ao domingo.
Peri, com o seu arco, companheiro inseparável e arma terrível na sua mão destra, sentava-se longe, à beira do rio, numa das pontas mais altas do rochedo ou no galho de alguma árvore, e não deixava ninguém aproximar-se num raio de vinte passos do lagar onde as moças se banhavam.
Quando algum aventureiro por acaso transpunha esse círculo que o índio traçava com o olhar em redor de si, Peri na posição sobranceira em que se colocara o percebia imediatamente.
Então se o descuidado caçador sentia o seu chapéu ornar-se de repente com uma pena vermelha que voava pelos ares sibilando; se via uma seta arrebatar-lhe o fruto que ele estendia a mão para colher; se parava assustado diante de uma longa flecha emplumada que despedida por elevação vinha cair-lhe a dois passos da frente como para embargar-lhe o caminho e servir de baliza: não se admirava.
Compreendia imediatamente o que isto queria dizer; e pelo respeito que todos votavam a D. Antônio de Mariz e à sua família, arrepiava caminho; e voltava lançando uma jura contra Peri que lhe crivara o chapéu e o obrigara a encolher a mão de susto.
E fazia bem em voltar, porque o índio com o seu zelo ardente não duvidaria vazar-lhe os olhos para evitar que chegando-se à beira do rio, visse a moça a banhar-se nas águas.