— Aonde?... murmurava de vez em quando o frade com a voz cava.
O enfermo agonizava sempre; os soluços extremos da vida que se apaga como a lâmpada que bruxuleia, agitavam apenas o corpo enregelado.
Por fim o frade viu-o levantar o braço hirto, apontando para a parede, e sentiu os seus lábios gelados e convulsos que tremeram, lançando no seu ouvido uma palavra que o fez saltar sobre o leito.
— Cruz!...
Fr. Ângelo ergueu-se circulando o aposento com a vista alucinada; na cabeceira da cama havia um Cristo de ferro sobre uma grande cruz de pau tosca e mal lavrada.
Com um movimento de raiva o frade apoderou-se da cruz, e quebrou-a de encontro ao joelho; a imagem rolou pelo chão; entre os estilhaços de madeira apareceu um rolo de pergaminho achatado pela pressão em que estivera.
Quebrou com os dentes o selo do papel; chegando à janela leu à claridade vacilante do relâmpago as primeiras palavras de um rotulo de letras vermelhas, que rezava nestes termos:
“Roteiro verídico e exato em que se trata da rota que fez Robério Dias, o pai, emo ano da graça de 1587 às paragens de Jacobina, onde descobriu com o favor deDeus as mais ricas minas de prataria que existam no mundo; com a suma detodas as indicações de marcos, balizas e linha equinocial onde demoram aquelasditas minas; começado em 20 de janeiro, dia do mártir São Sebastião, eterminado na primeira dominga de Páscoa em que chegamos com a mercê daProvidência nesta cidade do Salvador.”
Enquanto o frade se esforçava para ler, o moribundo agonizava na última aflição, esperando talvez a absolvição final e a extrema-unção do penitente.
Mas o religioso não via nesse momento senão o papel que tinha nas mãos; deixou-se cair em um banco, e com a cabeça pendida sobre o braço, entregou-se a funda meditação.
Que pensava ele?...
Não pensava; delirava. Diante de seus olhos, a imaginação exaltada lhe apresentava um mar argênteo, um oceano de metal fundido, alvo e resplandecente, que ia se perder no infinito. As vagas desse mar de prata, ora achamalotavam-se, ora rolavam formando frocos de espumas, que pareciam flores de diamantes, de esmeraldas e rubins cintilando à luz do sol.
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Às vezes também nessa face lisa e polida desenhavam-se como em um espelho palácios encantados, mulheres belas como as huris do profeta, virgens graciosas como os anjos de Nossa Senhora do Monte Carmelo.
Assim decorreu meia hora, em que o silêncio era apenas interrompido pelo estertor do moribundo e pelo trovão que rugia; depois houve uma calma sinistra; o pecador expirava impenitente.
Fr. Ângelo levantou-se, arrancou o hábito com um gesto desesperado, e pisou-o aos pés; sobre o recosto do leito havia uma muda de roupa com que trajou-se; tirou as armas do cadáver, apanhou o chapéu de feltro, e apertando ao peito o manuscrito, dirigiu-se à porta.
Ouviam-se os passos de Nunes, que passeava fora no alpendre.
O frade estacou; a presença inesperada desse homem diante da porta deu-lhe uma inspiração. Tomou o hábito, vestiu-o sobre o seu novo trajo, e escondendo na manga o chapéu do aventureiro, cobriu-se com o largo capelo; então abriu a porta e dirigiu-se a Nunes.
— Consummatum est, irmão! disse ele com um tom compungido.
— Deus tenha sua alma!
— Assim o espero, se não me faltarem as forças para cumprir o seu último voto, que é uma reparação.
— De um grave pecado?
— De um crime, irmão. Dai-me luz; vou escrever a Fr. Diogo do Rosário, nosso prior, porque de onde vou talvez não volte, nem tenhais mais novas de mim.
O frade escreveu à claridade de uma acha de pau -candeia algumas linhas ao prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro, e despedindo-se de Nunes, partiu.
Quando dobrava o canto do pouso, o céu abriu-se e a terra incendiou-se com a luz de um relâmpago tão forte que o deslumbrou. Dois raios, descrevendo listras de fogo, tinham caído sobre a floresta e espalhado em torno um cheiro de súlfur que asfixiava.
O carmelita teve uma vertigem; lembrou-se da cena da tarde, do tremendo castigo que ele próprio havia evocado na sua hipocrisia, e se realizara tão prontamente.
Mas o deslumbramento passou; estremecendo ainda e pálido de terror, o réprobo levantou o braço como desafiando a cólera do céu, e soltou uma blasfêmia horrível:
— Podeis matar-me; mas se me deixardes a vida, hei de ser rico e poderoso, contra a vontade do mundo inteiro!
Havia nestas palavras um quer que seja da sanha e raiva impotente de Satanás precipitado no abismo pela sentença irrevogável do Criador.
Continuando o seu caminho pelas trevas, costeou a cerca e chegou a uma grande choça, que havia no fundo do pouso, e onde o missionário conseguira aldear algumas famílias de índios; entrou e acordou um dos selvagens, a quem ordenou se preparasse para acompanhá-lo apenas rompesse o dia.
A chuva caia em torrentes; o vento açoitava as paredes de sapé, esfuziando por entre a palha.
O frade passou a noite em claro, refletindo e traçando no seu espírito um plano infernal, para cuja realização não trepidaria diante de nenhum obstáculo; de vez em quando levantava-se para ver se o horizonte já se iluminava.
Finalmente veio o dia; a tempestade se tinha desfeito durante a noite; o tempo estava sereno.
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O carmelita acompanhado pelo selvagem partiu: vagou pela floresta e pelo campo em todas as direções; alguma coisa procurava. Ele avistou depois de duas horas a touça de cardos junto da qual se passou a última cena que narramos; examinou-a por todos os lados e sorriu de satisfeito. Trepando à árvore, e escorregando pelo cipó, entraram ele e o selvagem na área que já conhecemos; o sol tinha nascido há pouco.
No dia seguinte, por volta de duas horas da tarde, saiu deste lagar um só homem; não era ele o frade nem o selvagem. Era um aventureiro destemido e audaz, em cuja fisionomia se reconheciam ainda os traços do carmelita Fr. Ângelo di Luca.
Este aventureiro chamou-se Loredano.
Deixava naquele lugar e sepultado no seio da terra um terrível segredo; isto é, um rolo de pergaminho, um burel de frade e um cadáver.
Cinco meses passados, o vigário da ordem participava ao geral em Roma que o irmão Fr. Ângelo di Luca morrera como santo e mártir no zelo de sua fé apostólica.
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