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O silêncio se restabeleceu.

De repente uma nuvem abriu-se; a corrente elétrica enroscando-se pelo ar, como uma serpente de fogo, abateu-se sobre um tronco de cedro que havia defronte do pouso.

A árvore fendeu-se desde o olho até à raiz em duas metades; uma permaneceu em pé, esguia e mutilada; a outra, tombando sobre o terreiro, bateu nos peitos de Fernão Aines e o atirou esmagado no fundo do alpendre.

Seu companheiro ficou imóvel por muito tempo; depois começou a tremer como se tiritasse com o frio de terças; o polegar estendido para fazer o sinal-da-cruz, os dentes chocando uns contra os outros, o rosto contraído, davam-lhe aspecto terrível e ao mesmo tempo grotesco.

O frade se tinha voltado lívido como se ele fosse a vitima da catástrofe; o terror decompôs um momento a sua fisionomia; porém logo um sorriso sardônico fugiu-lhe dos lábios ainda descorados pelo choque violento que sofrera.

Passado o primeiro momento de susto, os dois chegaram-se para o ferido e quiseram prestar-lhe socorro; este fez um grande esforço, e erguendo-se sobre um dos braços, soltou numa golfada de sangue estas palavras:

— Castigo do céu!

Reconhecendo que não havia mais cura para o corpo, o moribundo exigiu o remédio espiritual: com a voz fraca pediu a Fr. Ângelo que o ouvisse de confissão.

Página 68

Nunes fez recolher o seu companheiro a um aposento cuja porta dava para o alpendre, e deitou-o sobre uma cama de couro.

Já havia anoitecido, o aposento estava na maior escuridão; apenas por instantes o relâmpago brilhava lançando o clarão azulado sobre o confessor meio reclinado para o moribundo a fim de escutar-lhe a voz que ia gradualmente enfraquecendo.

— Ouvi-me sem me interromper, meu padre; sinto que poucos momentos me restam; e embora não haja perdão para mim quero ao menos reparar o meu crime.

— Falai, irmão; eu vos escuto.

— Em novembro passado cheguei ao Rio de Janeiro: fui hospedado por um parente meu: tanto ele como sua mulher me fizeram o melhor acolhimento.

“Ele, que havia muito viajado pelo sertão e se dera à vida de aventureiro, falou-me um dia de tentarmos uma expedição, cujo resultado seria grande riqueza para nós ambos.

“Por diversas vezes nos entretivemos sobre esse objeto, até que abriu-se inteiramente comigo.

“O pai de um Robério Dias, colono da Bahia, guiado por um índio, havia descoberto nos sertões daquela província minas de prata tão abundantes que se poderiam calçar desse metal as ruas de Lisboa.

“Como atravessasse sertões ínvios e inóspitos, Dias escrevera um roteiro com as indicações necessárias para em qualquer tempo poder-se achar o lugar onde estão situadas as ditas minas.

“Este roteiro fora subtraído a seu dono sem que ele o percebesse: e por uma longa sucessão de fatos, que faltam-me as forças para contar-vos, viera cair nas mãos do meu parente.

“De quantos crimes já não tinha sido causa esse papel, e de quantos não seria ainda, meu padre, se Deus não houvesse finalmente punido em mim o último herdeiro desse legado de sangue!...”

O moribundo parou um momento extenuado; depois continuou com a voz débil:

“Já então com a chegada do governador D. Francisco de Sousa se sabia que Robério oferecera em Madri a Filipe 11 a descoberta das minas, e que não o tendo el-rei premiado como esperou, obstinava-se em guardar silêncio.

“A razão desse silêncio que se atribuía geralmente ao despeito, só a sabia meu parente em cujas mãos parava o roteiro; Robério chegado às Espanhas se apercebera do roubo que lhe haviam feito, e quisera aos menos lograr o prêmio.

“O segredo das minas, a chave dessa riqueza imensa que excedia todos os tesouros do Miramolim, estavam nas mãos do meu parente que, necessitando de um homem dedicado que o auxiliasse na empresa, julgou que a ninguém melhor do que a mim podia escolher para partilhar os seus riscos e esperanças.

“Aceitei essa meação do crime, esse pacto de roubo, meu padre... Foi o meu primeiro erro!...”

A voz do aventureiro tornou-se ainda mais sumida. O frade inclinado sobre ele, parecia devorar com os lábios entreabertos as palavras balbuciadas pelo moribundo.

— Coragem filho!

— Sim! Devo dizer tudo!... Fascinado pela descrição desse tesouro fabuloso, tive uma lembrança iníqua... essa lembrança tornou-se desejo... depois idéia, e...

projeto... por fim realizou-se... foi um crime! Assassinei meu parente; e sua mulher...

— E... exclamou o frade com a voz surda.

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— E roubei o segredo! O frade sorriu nas trevas.

— Agora só me resta a misericórdia de Deus, e a reparação do mal que fiz...

Robério é morto, sua mulher vive desgraçada na Bahia... Quero que este papel lhe seja entregue... Prometeis Fr. Ângelo?...

— Prometo! O papel?...

— Está... oculto...

— Aonde?

— Nes... ta...

O moribundo agonizava.

Fr. Ângelo, debruçado inteiramente sobre ele, com o ouvido colado à sua boca onde borbulhava uma espuma vermelha, com a mão sobre o coração para ver se ainda palpitava, parecia querer reter o último sopro da vida, a fim de tirar dele uma palavra ainda.

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