O índio começou, na sua linguagem tão rica e poética, com a doce pronúncia que parecia ter aprendido das auras da sua terra ou das aves das florestas virgens, esta simples narração:
“Era o tempo das árvores de ouro.
“A terra cobriu o corpo de Ararê, e as suas armas; menos o seu arco de guerra.
“Peri chamou os guerreiros de sua nação e disse:
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‘Pai morreu; aquele que for o mais forte entre todos, terá o arco de Ararê. Guerra!’
“Assim falou Peri; os guerreiros responderam: ‘Guerra!’
“Enquanto o sol alumiou a terra, caminhamos; quando a lua subiu ao céu, chegamos. Combatemos como Goitacás. Toda a noite foi uma guerra. Houve sangue, houve fogo.
“Quando Peri abaixou o arco de Ararê, não havia na taba dos brancos uma cabana em pé, um homem vivo; tudo era cinza.
“Veio o dia e alumiou o campo; veio o vento e levou a cinza.
“Peri tinha vencido; era o primeiro de sua tribo, e o mais forte de todos os guerreiros. “Sua mãe chegou e disse:
‘Peri, chefe dos Goitacás, filho de Ararê, tu és grande, tu és forte como teu pai; tua mãe te ama’.
“Os guerreiros chegaram e disseram:
‘Peri, chefe dos Goitacás, filho de Ararê, tu és o mais valente da tribo e o mais temido do inimigo; os guerreiros te obedecem’.
“As mulheres chegaram e disseram:
‘Peri, primeiro de todos, tu és belo como o sol, e flexível como a cana selvagem que te deu o nome; as mulheres são tuas escravas’.
“Peri ouviu e não respondeu; nem a voz de sua mãe, nem o canto dos guerreiros, nem o amor das mulheres, o fez sorrir.
“Na casa da cruz, no meio do fogo, Peri tinha visto a senhora dos brancos; era alva como a filha da lua; era bela como a garça do rio.
“Tinha a cor do céu nos olhos; a cor do sol nos cabelos; estava vestida de nuvens, com um cinto de estrelas e uma pluma de luz.
“O fogo passou; a casa da cruz caiu.
“De noite Peri teve um sonho; a senhora apareceu; estava triste e falou assim:
‘Peri, guerreiro livre, tu és meu escravo; tu me seguirás por toda a parte, como a estrela grande acompanha o dia’.
“A lua tinha voltado o seu arco vermelho, quando tornamos da guerra; todas as noites Peri via a senhora na sua nuvem; ela não tocava a terra, e Peri não podia subir ao céu.
“O cajueiro quando perde a sua folha parece morto; não tem flor, nem sombra; chora umas lágrimas doces como o mel dos seus frutos.
“Assim Peri ficou triste.
“A senhora não apareceu mais; e Peri via sempre a senhora nos seus olhos.
“As árvores ficaram verdes; os passarinhos fizeram seus ninhos; o sabiá cantou; tudo ria: o filho de Ararê lembrou-se de seu pai.
“Veio o tempo da guerra.
“Partimos; andamos; chegamos ao grande rio. Os guerreiros armaram as redes; as mulheres fizeram fogo; Peri olhou o sol.
“Viu passar o gavião.
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“Se Peri fosse o gavião, ia ver a senhora no céu.
“Viu passar o vento.
“Se Peri fosse o vento, carregava a senhora no ar.
“Viu passar a sombra.
“Se Peri fosse a sombra, acompanhava a senhora de noite.
“Os passarinhos dormiram três vezes.
“Sua mãe veio e disse:
‘Peri, filho de Ararê, guerreiro branco salvou tua mãe; virgem branca também’.
“Peri tomou suas armas e partiu; ia ver o guerreiro branco para ser amigo; e a filha da senhora para ser escravo.