Ouvindo as palavras nobres do fidalgo, sentiu-se perturbado: porque já então lhe fermentava no cérebro o plano da trama que ia urdir, e que vimos revelar-se um ano depois.
Saindo do lugar em que deixara oculto o seu tesouro, o aventureiro caminhou direito à casa de D. Antônio de Mariz e pediu a hospitalidade que a ninguém se recusava: sua intenção era passar-se ao Rio de Janeiro, onde concertaria os meios de aproveitar a fortuna.
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Duas idéias se tinham apresentado ao seu espírito no momento em que se vira possuidor do roteiro de Robério Dias.
Iria à Europa vender o segredo a Filipe 11 ou a qualquer outro soberano de uma nação poderosa e inimiga da Espanha?
Exploraria por sua conta com alguns aventureiros que tomasse ao seu serviço esse tesouro fabuloso que devia elevá-lo ao fastígio da grandeza?
Esta última idéia lhe sorria mais; entretanto não tomou nenhuma resolução definitiva; posto o seu segredo em lugar seguro, aliviado desse peso que o fazia estremecer a cada momento, o italiano resolveu, como dissemos, ir pedir hospitalidade a D. Antônio de Mariz.
Aí formularia o seu plano, traçaria o caminho que devia seguir, e então voltaria a procurar o papel que dormia no seio da terra, e com ele marcharia à riqueza, à fortuna, ao poder.
Chegado à casa do fidalgo, o ex-carmelita com o seu espírito de observação estudou o terreno e achou-o favorável à realização de uma idéia que começou logo a germinar no seu espírito até que tomou as proporções de um projeto.
Homens mercenários que vendem a sua liberdade, consciência e vida por um salário, não têm dedicação verdadeira senão a um objeto, o dinheiro; seu senhor, seu chefe e seu amigo é o que mais lhes paga. Fr. Ângelo conhecia o coração humano, e por isso apenas iniciado no regimento da banda, avaliou do caráter dos aventureiros.
— Esses homens me serviriam perfeitamente, disse ele consigo.
No meio dessas reflexões um fato veio produzir completa revolução nas suas idéias. Viu Cecília.
A imagem dessa bela menina, casta e inocente, produziu naquela organização ardente e por muito tempo comprimida o mesmo efeito da faisca sobre a pólvora.
Toda a continência de sua vida monástica, todos os desejos violentos que o hábito tinha selado como uma crosta de gelo, todo esse sangue vigoroso e forte da mocidade, passada em vigílias e abstinências, refluíram ao coração e o sufocaram um momento.
Depois um êxtase de voluptuosidade imensa embebeu essa alma velha pela corrupção e pelo crime, mas virgem para o amor. O seu coração revelava-se com toda a veemência da vontade audaz, que era o móvel de sua vida.
Sentiu que essa mulher era tão necessária à sua existência, como o tesouro que sonhava; ser rico para ela, possuí-la para gozar a riqueza, foi desde então o seu único pensamento, a sua idéia dominante.
Um dos aventureiros deixava a casa; Loredano solicitou o seu lagar e obteve-o como acabamos de ver; o seu plano estava traçado.
Qual era, já o sabemos pelas cenas passadas; o italiano contava tornar-se senhor da banda, apoderar-se de Cecília, ir às minas encantadas, carregar tanta prata quanta pudesse levar, dirigir-se à Bahia, assaltar uma nau espanhola, tomá-la de abordagem, e fazer-se de vela para a Europa.
Aí armava navios de corso, voltava ao Brasil, explorava o seu tesouro, tirava dele riquezas imensas e... E o mundo abria-se diante de seus olhos, cheio de esperança, de futuro e felicidade.
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Durante um ano trabalhou nessa empresa com uma sagacidade e inteligência superior; ganhara os dois homens influentes da banda, Rui Soeiro e Bento Simões; por meio deles preparava o desenlace final.
Ignorado pelos outros ele dirigia essa conspiração que lavrava surdamente; só havia em toda a banda duas pessoas que o podiam perder. Ora, Loredano não era homem que deixasse de prever a eventualidade de uma traição, e que
entregasse aos seus dois cúmplices uma arma com que pudessem feri-lo; daí a lembrança desse testamento que entregara a D. Antônio de Mariz.
Somente nesse papel, em vez de ter revelado o seu plano, como o italiano dissera a Rui Soeiro ele havia apenas indicado a traição dos dois aventureiros, declarando-se seduzido por eles; o frade mentia pois até na hora extrema em que o papel devia falar.
A confiança que tinha, e com razão, no caráter de D. Antônio, tranqüilizava-o completamente; sabia que em caso algum o fidalgo abriria um testamento que lhe fora dado em depósito.
Eis como Fr. Ângelo di Luca achava-se sob o seu novo nome de Loredano, pertencendo à casa de D. Antônio de Mariz e preparando-se para realizar afinal o seu pensamento de todos os instantes.
Um ano havia que esperava, e como ele dizia, estava cansado: resolvera dar enfim o golpe; e para isso, depois de haver esmagado os dois cúmplices com a sua ameaça, depois de os haver reduzido a autômatos obedecendo ao seu gesto, entendeu que seria conveniente ao mesmo tempo animar esses manequins com algum sentimento, que lhes desse o atrevimento, a audácia e a força necessária para se lançarem na voragem e não trepidarem diante de nenhum obstáculo.
Este sentimento foi a ambição.
À vista do roteiro era impossível que não sentissem a febre da riqueza, a auri sacra fames que se havia apoderado dele próprio, no momento em que vira abrir-se diante de seus olhos um mar de prata fundida em que os seus lábios podiam matar a sede ardente que o devorava.
O efeito não desmentiu a sua previsão; lendo o rótulo, cada um dos aventureiros ficara eletrizado; para tocar aquele abismo insondável de riquezas, nem um deles hesitaria em passar sobre o corpo de seu amigo, ou mesmo sobre as cinzas de uma casa ou a ruína de uma família.
Infelizmente aquela voz inesperada, saída do seio da terra, viera modificar a situação.
Mas não antecipemos; por ora ainda estamos em 1603, um ano antes daquela cena, e ainda nos falta contar certas circunstâncias que serviram para o seguimento desta verídica história.
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IV CECI
Poucas horas depois que Loredano fora admitido na casa de D. Antônio de Mariz, Cecília chegando à janela do seu quarto viu do lado oposto do rochedo Peri, que a olhava com uma admiração ardente.
O pobre índio tímido e esquivo, não se animava a chegar-se à casa, senão quando via de longe a D. Antônio de Mariz passeando sobre a esplanada; adivinhava que naquela habitação só o coração nobre do velho fidalgo sentia por ele alguma estima.
Havia quatro dias que o selvagem não aparecia; D. Antônio supunha já que ele tivesse voltado com sua tribo para os lugares onde vivia, e que só deixara para fazer a guerra aos índios e portugueses.
A nação Goitacá dominava todo o território entre o Cabo de São Tomé e o Cabo Frio; era um povo guerreiro, valente e destemido, que por diversas vezes fizera sentir aos conquistadores a força de suas armas.
Tinha arrasado completamente a colônia da Paraíba fundada por Pero de Góis; e depois de um assédio de seis meses conseguira destruir igualmente a colônia de Vitória, fundada no espírito Santo por Vasco Fernandes Coutinho.
Voltemos dessa pequena digressão histórica ao nosso herói.