O primeiro movimento de Cecília, vendo o índio fora de susto; fugira insensivelmente da janela. Mas o seu bom coração irritou-se contra esse receio, e disse-lhe que ela não tinha que temer do homem que lhe salvara a vida. Lembrou-se que era ser má e ingrata pagar a dedicação que o índio lhe mostrava deixando-lhe ver a repugnância que lhe inspirava.
Venceu pois a timidez, e assentou de fazer um sacrifício ao reconhecimento e gratidão que devia ao selvagem. Chegou à janela; fez com a mão alva e graciosa um gesto dizendo a Peri que se aproximasse.
O índio não se contendo de alegria, correu para a casa, enquanto Cecília ia ter com seu pai, e dizia-lhe:
— Vinde ver Peri, que chega, meu pai.
— Ah! inda bem, respondeu o fidalgo.
E acompanhando sua filha, D. Antônio foi ao encontro do índio que já subia a esplanada.
Peri trazia um pequeno cofo, tecido com extraordinária delicadeza, feito de palha muito alva, todo rendado; por entre o crivo que formavam os fios, ouviam-se uns chilidos fracos e um rumor ligeiro que faziam os pequenos habitantes desse ninho gracioso.
O índio ajoelhou aos pés de Cecília; sem animar-se a levantar os olhos para ela, apresentou-lhe o cabaz de palha: abrindo a tampa, a menina assustou-se, mas sorriu; um enxame de beija-flores esvoaçava dentro; alguns conseguiram escapar-se.
Destes um veio aninhar-se no seu seio, o outro começou a voltejar em torno de sua cabeça loura como se tomasse a sua boquinha rosada por um fruto.
A menina admirava essas avezinhas brilhantes, umas escarlates, outras azuis e verdes; mas todas de reflexos dourados, e formas mimosas e delicadas!
Vendo-se esses íris animados acredita-se que a natureza os criou com um sorriso, para viverem de pólen e de mel, e para brilharem no ar como as flores na terra e as estrelas no céu.
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Quando Cecília se cansou de admirá-los, tomou-os um por um, beijou-os, aqueceu-os no seio, e sentiu não ser uma flor bela e perfumada para que eles a beijassem também, e esvoaçassem constantemente em torno dela.
Peri olhava e era feliz; pela primeira vez depois que a salvara, tinha sabido fazer uma coisa, que trouxera um sorriso de prazer aos lábios da senhora. Entretanto, apesar dessa felicidade que sentia interiormente, era fácil de ver que o índio estava triste; ele chegou-se para D. Antônio de Mariz e disse-lhe:
— Peri vai partir.
— Ah! disse o fidalgo, voltas aos teus campos?
— Sim: Peri volta à terra que cobre os ossos de Ararê.
D. Antônio encheu o índio de presentes dados em seu nome e em nome de sua filha.
— Perguntai a ele por que razão parte e nos deixa, meu pai, disse Cecília. O
fidaldo traduziu a pergunta.
— Porque a senhora não precisa de Peri; e Peri deve acompanhar sua mãe e seus irmãos.
— E se a pedra quiser fazer mal à senhora, quem a defenderá? perguntou a menina sorrindo e fazendo alusão à narração do índio.
Ouvindo dos lábios de D. Antônio a pergunta, o selvagem não soube o que responder, porque lhe lembrava um pensamento que já tinha passado por seu espírito; temia que na sua ausência a menina corresse um perigo e ele não estivesse junto dela para salvá-la.
— Se a senhora manda, disse enfim, Peri fica.
Cecília, apenas seu pai lhe traduziu a resposta do índio, riu-se daquela cega obediência; mas era mulher; um átomo de vaidade dormia no fundo do seu coração de moça.
Ver aquela alma selvagem, livre como as aves que planavam no ar ou como os rios que corriam na várzea; aquela natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e coragem; aquela vontade indomável como a torrente que se precipita do alto da serra; prostrar-se a seus pés submissa, vencida, escrava!...
Era preciso que não fosse mulher para não sentir o orgulho de dominar essa organização e brincar com a força obrigando-a a curvar-se diante do seu olhar.
As mulheres têm isso de particular; reconhecendo-se fracas, a sua maior ambição é reinar pelo imã dessa mesma fraqueza, sobre tudo o que é forte, grande e superior a elas: não amam a inteligência, a coragem, o gênio, o poder, senão para vencê-los e subjugá-los.
Entretanto a mulher deixa-se bastantes vezes dominar; mas e sempre pelo homem que, não lhe excitando a admiração, não irrita a sua vaidade e não provoca por conseguinte essa luta da fraqueza contra a força.
Cecília era uma menina ingênua e inocente, que nem sequer tinha consciência do seu poder, e do encanto de sua casta beleza; mas era filha de Eva, e não podia se eximir de um quase nada de vaidade.
— A senhora não quer que Peri parta, disse ela com um arzinho de rainha, e fazendo um gesto com a cabeça.
O índio compreendeu perfeitamente o gesto.
— Peri fica.
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— Vede, Cecília, replicou D. Antônio rindo: ele te obedece! Cecília sorriu.
— Minha filha te agradece o sacrifício, Peri, continuou o fidalgo; mas nem ela nem eu queremos que abandones a tua tribo.
— A senhora mandou, respondeu o índio.
— Ela queria ver se tu lhe obedecias: conheceu a tua dedicação, está satisfeita; consente que partas.
— Não!
— Mas os teus irmãos, tua mãe, tua vida livre?