Meia hora depois uma luz esclareceu a janela do quarto, e a porta abrindo-se deixou ver o corpinho gracioso de Cecília que destacava no vão esclarecido.
A menina avistando o índio correu para ele.
— Meu pobre Peri, disse ela; tu sofreste hoje muito, não é verdade? E achaste tua senhora bem má e bem ingrata, porque te mandou partir! Mas agora, meu pai disse: Ficarás conosco para sempre.
— Tu és boa, senhora: tu choravas quando Peri ia partir; pediste para ele ficar.
— Então não tens queixa de Ceci? disse a menina sorrindo.
— O escravo pode ter queixa de sua senhora? tornou o índio simplesmente.
— Mas tu não és escravo!... respondeu Cecília com um gesto de contrariedade; tu és um amigo sincero e dedicado. Duas vezes me salvaste a vida; fazes impossíveis para me veres contente e satisfeita; todos os dias te arriscas a morrer por minha causa.
O índio sorriu.
— Que queres que Peri faça de sua vida, senhora?
— Quero que estime sua senhora e lhe obedeça, e aprenda o que ela lhe ensinar, para ser um cavalheiro como meu irmão D. Diogo e o Sr. Álvaro.
Peri abanou a cabeça.
— Olha, continuou a menina; Ceci vai te ensinar a conhecer o Senhor do Céu, e a rezar também e ler bonitas historias. Quando souberes tudo isto, ela bordará um manto de seda para ti; terá uma espada, e uma cruz no peito. Sim?
— A planta precisa de sol para crescer; a flor precisa de água para abrir; Peri precisa de liberdade para viver.
— Mas tu serás livres; e nobre como meu pai!
— Não!... O pássaro que voa nos ares cai, se lhe quebram as asas; o peixe que nada no rio morre, se o deitam em terra; Peri será como o pássaro e como o peixe, se tu cortas as suas asas e o tiras da vida em que nasceu.
Cecília bateu com o pé em sinal de impaciência.
— Não te zanga, senhora.
— Não fazes o que Ceci pede?... Pois Ceci não te quer mais bem; nem te chamará mais seu amigo. Vê; já não guardo a flor que me deste.
E a linda menina, machucando a flor que arrancou dos cabelos, correu para o seu quarto e bateu a porta com violência.
O índio voltou pesaroso à sua cabana.
De repente cortou o silêncio da noite voz argentina, que cantava uma antiga xácara portuguesa, com sentimento e expressão arrebatadora. Os sons doces de uma guitarra espanhola faziam o acompanhamento da música.
A xácara dizia assim:
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“Foi um dia. — Infanção mouro
Deixou
Alcáçar de prata e ouro.
Montado no seu corcel.
Partiu
Sem pajem, sem anadel.
Do castelo à barbacã
Chegou;
Viu formosa castelã.
Aos pés daquela a quem ama
Jurou
Ser fiel à sua dama.
A gentil dona e senhora
Sorriu;
Ai! que isenta ela não fora!
‘Tu és mouro; eu sou cristã’:
Falou