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Mas o tempo urgia.

Fez um esforço supremo sobre si mesmo; firmou o joelho à borda do leito, fechou os olhos e estendeu as mãos.

Página 155

V DEUS DISPÕE

O braço de Loredano estendeu-se sobre o leito; porém a mão que se adiantava e ia tocar o corpo de Cecília estacou no meio do movimento, e subitamente impelida foi bater de encontro à parede.

Uma seta, que não se podia saber de onde vinha, atravessara o espaço com a rapidez de um raio, e antes que se ouvisse o sibilo forte e agudo pregara a mão do italiano ao muro do aposento.

O aventureiro vacilou e abateu-se por detrás da cama; era tempo, porque uma segunda seta, despedida com a mesma força e a mesma rapidez, cravava-se no lugar onde há pouco se projetava a sombra de sua cabeça.

Passou se então, ao redor da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura, uma cena horrível, porem silenciosa.

Loredano nos transes da dor por que passava, compreendera o que sucedia; tinha adivinhado naquela seta que o ferira a mão de Peri; e sem ver, sentia o índio

aproximar se terrível de ódio, de vingança, de cólera e desespero pela ofensa que acabava de sofrer sua senhora.

Então o réprobo teve medo; erguendo-se sobre os joelhos arrancou convulsivamente com os dentes a seta que pregava sua mão à parede, e precipitou-se para o jardim, cego, louco e delirante.

Nesse mesmo instante, dois segundos talvez depois que a última flecha caíra no aposento, a folhagem do óleo que ficava fronteiro à janela de Cecília agitou -se e um vulto embalançando-se sobre o abismo, suspenso por um frágil galho da árvore, veio cair sobre o peitoril.

Aí agarrando-se à ombreira saltou dentro do aposento com uma agilidade extraordinária; a luz dando em cheio sobre ele desenhou o seu corpo flexível e as suas formas esbeltas.

Era Peri.

O índio avançou-se para o leito, e vendo sua senhora salva respirou; com efeito a menina, a meio despertada pelo rumor da fugida de Loredano, voltara-se do outro lado e continuara o sono forte e reparador como é sempre o sono da juventude e da inocência.

Peri quis seguir o italiano e matá-lo, como já tinha feito aos seus dois cúmplices; mas resolveu não deixar a menina exposta a um novo insulto, como o que acabava de sofrer, e tratou antes de velar sobre sua segurança e sossego.

O primeiro cuidado do índio foi apagar a vela, depois fechando os olhos aproximou-se do leito e com uma delicadeza extrema puxou a colcha de damasco azul até ao colo da menina.

Parecia-lhe uma profanação que seus olhos admirassem as graças e os encantos que o pudor de Cecília trazia sempre vendados; pensava que o homem que uma vez tivesse visto tanta beleza, nunca mais devia ver a luz do dia.

Depois desse primeiro desvelo, o índio restabeleceu a ordem no aposento; deitou a roupa na cômoda, fechou a gelosia e as abas da janela, lavou as nódoas de sangue que ficaram impressas na parede e no soalho; e tudo isto com tanta solicitude, tão sutilmente, que não perturbou o sono da menina.

Quando acabou o seu trabalho, aproximou-se de novo do leito, e à luz frouxa da lamparina contemplou as feições mimosas e encantadoras de Cecília.

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Estava tão alegre, tão satisfeito de ter chegado a tempo de salvá-la de uma ofensa e talvez de um crime; era tão feliz de vê-la tranqüila e risonha sem ter sofrido o menor susto, o mais leve abalo, que sentiu a necessidade de exprimir-lhe por algum modo a sua ventura.

Nisto seus olhos abaixando-se descobriram sobre o tapete da cama dois pantufos mimosos forrados de cetim e tão pequeninos que pareciam feitos para os pés de uma criança; ajoelhou e beijou-os com respeito, como se foram relíquia sagrada.

Eram então perto de quatro horas; pouco tardava para amanhecer; as estrelas já iam se apagando a uma e uma; e a noite começava a perder o silêncio profundo da natureza quando dorme.

O índio fechou por fora a porta do quarto que dava para o jardim, e metendo a chave na cintura, sentou-se na soleira como cão fiel que guarda a casa de seu senhor, resolvido a não deixar ninguém aproximar-se.

Aí refletiu sobre o que acabava de passar; e acusava-se a si mesmo de ter deixado o italiano penetrar no aposento de sua senhora: Peri porem caluniava-se, porque só a Providência podia ter feito nessa noite mais do que ele; porque tudo quanto era possível à inteligência, à coragem, à sagacidade e à força do homem, o índio havia realizado.

Depois da partida de Loredano e da conversa que teve com Álvaro, certo de que sua senhora já não corria perigo, e de que os dois cúmplices do italiano iam ser expulsos como ele, o índio não pensando mais senão no ataque dos Aimorés, partiu imediatamente.

O seu pensamento era ver se descobria pelas vizinhanças do Paquequer indícios da passagem de alguma tribo da grande raça Guarani a que ele pertencia; seria um amigo e um aliado para D. Antônio de Mariz.

O ódio inveterado que havia entre as tribos da grande raça e a nação degenerada dos Aimorés, justificava a esperança de Peri; mas infelizmente, tendo percorrido todo o dia a floresta, não encontrou o menor vestígio do que procurava.

O fidalgo estava pois reduzido às suas próprias forças: mas embora fossem estas pequenas, o índio não desanimou; tinha consciência de si; e sabia que na última extremidade a sua dedicação por Cecília lhe inspiraria meios de salvar a ela e a tudo que ela amava.

Voltou à casa já noite fechada; foi ter com Álvaro; perguntou-lhe o que era feito dos dois aventureiros; o cavalheiro disse-lhe que D. Antônio de Mariz recusara crer na acusação.

De fato, o fidalgo leal, habituado ao respeito e à fidelidade de seus homens, não admitia que se concebesse uma suspeita sem provas; entretanto como a palavra de Peri tinha para ele toda a valia, ficara de ouvir de sua boca a narração do que presenciara, para conhecer o peso que devia dar a semelhante acusação.

Peri retirou-se inquieto e arrependido de não ter persistido no seu primeiro projeto; enquanto esses dois homens que ele supunha já expulsos estivessem ali, sabia que um perigo pairava sobre a casa.

Assim resolveu não dormir; tomou o seu arco e sentou-se na porta de sua cabana; apesar de possuir a clavina que lhe dera D. Antônio, o arco era a arma favorita de Peri; não demandava tempo para carregar; não fazia o menor estrépito; lançava quase instantaneamente dois, três tiros: e a sua flecha era tão terrível e tão certeira como a bala.

Passado muito tempo o índio ouviu cantar uma coruja do lado da escada; esse canto causou-lhe estranheza por duas razões: a primeira, porque era mais sonoro do que é o cacarejar daquela ave agoureira; a segunda porque em vez de partir do cimo de uma árvore saia do chão.

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Esta reflexão o fez levantar; desconfiou da coruja que tinha hábitos diferentes de suas companheiras; quis conhecer a razão desta singularidade.

Viu do outro lado da esplanada três vultos que atravessavam ligeiramente; isto aumentou a sua desconfiança; os homens de vigia eram ordinariamente dois e não três.

Seguiu-os de longe; mas quando chegou ao pátio, não viu senão um dos homens que entrava na alpendrada; os outros tinham desaparecido.

Peri procurou-os por toda a parte e não os viu; estavam ocultos pelo pilar que se elevava na ponta do rochedo, e não lhe era possível descobri-los.

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