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Toda a sua família já então despertada recebeu a triste noticia de tantos acontecimentos passados durante aquela noite fatal; D. Lauriana, Cecília e Isabel recolheram-se ao oratório, e rezavam enquanto se preparava tudo para uma resistência desesperada.

Os aventureiros comandados por Loredano arregimentaram-se e marcharam para a casa dispostos a dar um assalto terrível; o seu furor redobrava tanto mais, quanto o remorso no fundo da consciência começava a mostrar-lhes toda a hediondez de sua ação.

No momento em que dobravam o canto, ouviu-se um som rouco que se prolongou pelo espaço, como o eco surdo de um trovão em distancia.

Peri estremeceu, e lançando-se para a beira da esplanada estendeu os olhos pelo campo que costeava a floresta. Quase ao mesmo tempo um dos aventureiros que estava ao lado de Loredano caiu traspassado por uma flecha.

— Os Aimorés!...

Apenas soltou Peri esta exclamação, uma linha movediça, longo arco de cores vivas e brilhantes, agitou-se ao longe da planície irradiando à luz do sol nascente.

Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, armados de grossas clavas e arcos enormes, avançavam soltando gritos medonhos.

A inúbia retroava; o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavam um concerto horrível, harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras.

— Os Aimorés!... repetiram os aventureiros

empalidecendo.

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VIII DESÂNIMO

Dois dias passaram depois da chegada dos Aimorés; a posição de D. Antônio de Mariz e de sua família era desesperada.

Os selvagens tinham atacado a casa com uma força extraordinária; diante deles a índia, terrível de ódio, os excitava à vingança

As setas escurecendo o ar abatiam-se como uma nuvem sobre a esplanada, e crivavam as portas e as paredes do edifício.

À vista do perigo iminente que corriam todos, os aventureiros revoltados retiraram-se e trataram de defender-se do ataque dos selvagens.

Houve como que um armistício entre os rebeldes e o fidalgo; sem se reunirem, os aventureiros conheceram que deviam combater o inimigo comum, embora depois levassem ao cabo a sua revolta.

D. Antônio de Mariz, encastelado na parte da casa que habitavam, rodeado de sua família e de seus amigos fiéis, resolvera defender até à última extremidade esses penhores confiados ao seu amor de esposo e de pai.

Se a Providência não permitisse que um milagre os viesse salvar, morreriam todos; mas ele contava ser o último, a fim de velar que mesmo sobre os seus despojos não atirassem um insulto.

Era o seu dever de pai, e o seu dever de chefe; como o capitão, que é o último a abandonar o seu navio, ele seria o último a abandonar a vida, depois de ter assegurado às cinzas dos seus o respeito que se deve aos mortos.

Bem mudada estava essa casa que vimos tão alegre e tão animada! Parte do edifício que tocava com o fundo onde habitavam os aventureiros tinha sido abandonada por prudência; D. Antônio concentrara sua família no interior da habitação para evitar algum acidente.

Cecília deixara o seu quartinho tão lindo e tão mimoso, e nele estabelecera Peri o seu quartel-general e o seu centro de operações; porque, é preciso dizer, o índio não partilhava o desanimo geral, e tinha uma confiança inabalável nos seus recursos.

Seriam dez horas da noite: a lâmpada de prata suspensa no teto da grande sala iluminava uma cena triste e silenciosa.

Todas as janelas e portas estavam fechadas; de vez em quando ouvia-se o estrépito que fazia uma seta cravando-se na madeira, ou enfiando-se por entre as telhas.

Nas duas extremidades da sala e na frente tinham-se praticado no alto da parede algumas seteiras, junto das quais os aventureiros faziam à noite uma sentinela constante, a fim de prevenir uma surpresa.

D. Antônio de Mariz, sentado numa cadeira de espaldar, sob o dossel, repousava um instante; o dia fora rude; os índios tinham investido por diferentes vezes a escada de pedra da esplanada; e o fidalgo com o pequeno número de combatentes de que dispunha e com o auxilio da colubrina conseguira repeli-los.

A sua clavina carregada descansava de encontro ao espaldar da cadeira; e as suas pistolas estavam colocadas em cima de um bufete ao alcance do braço.

Sua bela cabeça encanecida, pendida ao seio, ressaltava sobre o veludo preto de seu gibão, coberto por uma rede finíssima de malhas de aço que lhe guarnecia o peito.

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Parecia adormecido; mas de vez em quando erguia os olhos e corria o vasto aposento, contemplando com uma melancolia extrema a cena que se desenhava no fundo meio esclarecido da sala.

Depois voltava à mesma posição, e continuava suas dolorosas reflexões; o fidalgo conservava toda a firmeza e coragem, mas interiormente tinha perdido a esperança.

Do lado oposto Cecília recostada em um sofá parecia desfalecida; seu rosto perdera a habitual vivacidade: seu corpo ligeiro e gracioso, alquebrado por tantas emoções prostrava-se com indolência sobre uma colcha de damasco. A mãozinha caia imóvel como uma flor a que tivessem quebrado a haste delicada; e os lábios descorados agitavam-se às vezes murmurando uma prece.

De joelhos à beira do sofá, Peri não tirava os olhos de sua senhora; dir-se-ia que aquela respiração branda que fazia ondular os seios da menina, e que se exalava de sua boca entreaberta, era o sopro que alimentava a vida do índio.

Desde o momento da revolta não deixou mais Cecília; seguia-a como uma sombra; sua dedicação, já tão admirável, tinha tocado o sublime com a iminência do perigo. Durante estes dois dias ele havia feito coisas incríveis, verdadeiras loucuras do heroísmo e abnegação.

Sucedia que um selvagem aproximando-se da casa soltava um grito que vinha causar um ligeiro susto à menina?

Peri lançava-se como um raio, e antes que tivesse tempo de contê-lo, passava entre uma nuvem de flechas, chegava à beira da esplanada, e com um tiro de sua clavina abatia o Aimoré que assustara sua senhora, antes que ele tivesse tempo de soltar um segundo grito.

Cecília, aflita e doente, recusava tomar o alimento que sua mãe ou sua prima lhe traziam?

Peri correndo mil perigos, arriscando-se a despedaçar-se nas pontas dos rochedos e a ser crivado pelas flechas dos selvagens, ganhava a floresta, e daí a uma hora voltava trazendo um fruto delicado, um favo de mel envolto de flores, uma caça esquisita, que sua senhora tocava com os lábios para assim pagar ao menos tanto amor e tanta dedicação.

As loucuras do índio chegaram a ponto que Cecília foi obrigada a proibir-lhe que saísse de junto dela, e a guardá-lo à vista com receio de que não se fizesse matar a todo o momento.

Além da amizade que lhe tinha, um quer que seja, uma esperança vaga lhe dizia que na posição extrema em que se achavam, se alguma salvação podia haver para sua família seria à coragem, à inteligência, e à sublime abnegação de Peri que a deveriam.

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