— Tu saberás. Deixa Peri fazer o que tem no pensamento.
— Mas não correrás nem um perigo?
— Por que perguntas isso, senhora? disse o índio timidamente.
— Por quê?... exclamou Cecília levantando-se com vivacidade. Porque se para nos salvar é preciso que tu morras, eu rejeito o teu sacrifício, rejeito-o em meu nome e no de meu pai.
— Sossega, senhora; Peri não teme o inimigo; sabe o modo de vencê-lo.
A menina abanou a cabeça com ar incrédulo.
— Eles são tantos!...
O índio sorriu com orgulho.
— Sejam mil; Peri vencerá a todos, aos índios e aos brancos.
Ele pronunciou estas palavras com a expressão de naturalidade e ao mesmo tempo de firmeza que dá a consciência da força e do poder.
Contudo Cecília não podia acreditar o que ouvia; parecia-lhe inconcebível que um homem só, embora tivesse a dedicação e o heroísmo do índio, pudesse vencer não só os aventureiros revoltados, como os duzentos guerreiros Aimorés que assaltavam a casa.
Mas ela não contava com os recursos imensos de que dispunha essa inteligência vigorosa, que tinha ao seu serviço um braço forte, um corpo ágil, e uma destreza admirável; não sabia que o pensamento é a arma mais poderosa que Deus deu ao homem, e que com ela se abatem os inimigos, se quebra o ferro, se doma o fogo, e se vence por essa força irresistível e providencial que manda ao espírito dominar a matéria.
— Não te iludas; vais fazer um sacrifício inútil. Não é possível que um homem só vença tantos inimigos, ainda mesmo que esse homem seja Peri.
— Tu verás! respondeu o índio com segurança.
— E quem te dará força para lutar contra um poder tão grande?...
— Quem?... Tu, senhora, tu só, respondeu o índio fitando nela o seu olhar brilhante.
Cecília sorriu como devem sorrir os anjos.
— Vai, disse ela, vai salvar-nos. Mas lembra-te que se tu morreres, Cecília não aceitará a vida que lhe deres.
Peri ergueu-se.
— O sol que se levantar amanhã será o último para todos os teus inimigos; Ceci poderá sorrir como dantes, e ficar alegre e contente.
A voz do índio tornou-se trêmula; sentindo que não podia vencer a emoção atravessou rapidamente a sala e saiu.
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Chegando à esplanada Peri olhou as estrelas que começavam a apagar-se, e viu que o dia pouco tardaria a raiar: não tinha tempo a perder.
Qual era o projeto que havia concebido, e que lhe dava uma certeza e uma convicção profunda a respeito do seu resultado? Que meio ousado tinha ele para contar com a destruição dos inimigos e a salvação de sua senhora?
Fora difícil adivinhar; Peri guardava no fundo do coração esse segredo impenetrável, e nem a si mesmo o dizia com receio de trair-se, e de anular efeito, que esperava com uma confiança inabalável.
Tinha todos os inimigos na sua mão; e bastava-lhe um pouco de prudência para fulminá-los a todos como a cólera celeste, como o fogo de raio.
Peri dirigiu-se ao jardim e entrou no quarto de Cecília então abandonado por sua senhora, por causa da proximidade em que ficava do fundo da casa ocupada pelos aventureiros revoltados.
O quarto estava às escuras: mas a tênue claridade que entrava pela janela bastava ao índio para distinguir os objetos perfeitamente; a perfeição dos sentidos era um dom que os selvagens possuíam no mais alto grau.
Ele tomou suas armas uma a uma, beijou as pistolas que Cecília lhe havia dado e deitou-as no chão no meio do aposento, tirou os seus ornatos de penas, sua faixa de guerreiro, a pluma brilhante do seu cocar e lançou-os como um troféu sobre as suas armas.
Depois agarrou o seu grande arco de guerra, apertou-o ao seio e curvando-o de encontro ao joelho quebrou-o em duas metades, que foram juntar-se às armas e aos ornatos.
Por algum tempo Peri contemplou com um sentimento de dor profunda esses despojos de sua vida selvagem; esses emblemas de sua dedicação sublime por Cecília, e de seu heroísmo admirável.
Em luta com essa emoção poderosa, insensivelmente murmurou na sua língua algumas dessas palavras que a alma manda aos lábios nos momentos supremos:
— Arma de Peri, companheira e amiga, adeus! Teu senhor te abandona e te deixa: contigo ele venceria; contigo ninguém poderia vencê-lo. E ele quer ser vencido...
O índio levou a mão ao coração:
— Sim!... Peri, filho de Ararê, primeiro de sua tribo, forte entre os fortes, guerreiro goitacá, nunca vencido, vai sucumbir na guerra. A arma de Peri não pode ver seu senhor pedir a vida ao inimigo; o arco de Ararê, já quebrado, não salvará o filho.
Sua cabeça altiva e sobranceira enquanto pronunciava estas palavras caiu-lhe sobre o seio; por fim venceu a sua emoção, e cingindo nos seus braços esses troféus de suas armas e de suas insígnias de guerra, estreitou-as ao peito em um último abraço de despedida.
Um aroma agreste das plantas que começavam a se abrir com a aproximação do dia, avisou-lhe que a noite estava a acabar.
Quebrou a axorca de frutos que trazia na perna sobre o artelho, como todos os selvagens: este ornato era feito de pequenos cocos ligados por um fio e tingidos de amarelo.
Peri tomou dois destes frutos e partiu-os com a faca, sem contudo separar as cascas; fechando -os então na sua mão, levantou o braço como fazendo um desafio ou uma ameaça terrível e lançou-se fora do aposento.
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