O aventureiro voltou trazendo a luz.
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— É singular, disse ele; o vento pode apagar uma candeia, mas não lhe tira o pavio.
— O vento, dizeis. Acaso o vento tem sangue?
— Que quereis dizer?
— Que o vento que apagou a vela é o mesmo que deixou o seu sinal neste ferro.
E Loredano mostrou ao aventureiro a sua faca, cuja ponta estava tinta de sangue ainda liquido.
— Há aqui então um inimigo?...
— Decerto; os amigos não precisam ocultar-se.
Nisto ouviram um rumor no telhado, e um morcego passou agitando lentamente as grandes asas: estava ferido.
— Eis o inimigo!... exclamou Martim rindo-se.
— É verdade, respondeu Loredano no mesmo tom; confesso que já tive medo de um morcego.
Tranqüilos a respeito do incidente que os havia demorado, os dois entraram na cozinha, e daí por uma brecha estreita praticada na parede penetraram no interior da casa há pouco habitada por D. Antônio de Mariz e sua família.
Atravessaram parte do edifício e chegaram a uma varanda que tocava de um lado com o quarto de Cecília e do outro com o oratório e o gabinete de armas do fidalgo.
Aí o aventureiro parou; e mostrando a Loredano a porta adufada de jacarandá, que dava entrada para o gabinete, disse-lhe:
— Não é com duas razões que a deitaremos dentro!
Loredano aproximou-se e reconheceu que a solidez e fortaleza da porta não lhe permitia a menor violência: todo o seu plano estava destruído.
Contava durante a noite se introduzir furtivamente na sala, e assassinar a D.
Antônio de Mariz, Aires Gomes e Álvaro antes que eles pudessem ser socorridos por seus companheiros, consumado o crime, estava senhor da casa.
Como remover o obstáculo que lhe aparecia? A menor violência contra a porta despertaria a atenção de D. Antônio de Mariz e inutilizaria todo o seu projeto.
Enquanto refletia nisso, os seus olhos caíram sobre uma estreita fresta que havia no alto da parede do oratório, e que servia mais para dar ar do que luz.
Por esta abertura o italiano conheceu que aquela parte da parede era singela, e feita de um só tijolo; com efeito o oratório tinha sido outrora um corredor largo que ia da varanda à sala, e que fora separado por uma ligeira divisão.
Loredano mediu a parede de alto a baixo, e acenou ao seu companheiro.
— É por aqui que havemos de entrar, disse ele apontando para a parede.
— Como? A menos de não ser um mosquito para passar por aquela fresta!
— Esta parede assenta sobre uma viga; tirada ela, está aberto o caminho!
— Entendo.
— Antes que possam tomar a si do susto, teremos acabado.
O aventureiro quebrou com a ponta da faca o reboco da parede e descobriu a viga que lhe servia de alicerce.
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— Então?
— Não há dúvida. Daqui a duas horas dou-vos isto pronto.
Martim Vaz, depois da morte de Rui Soeiro e Bento Simões, tinha-se tornado o braço direito de Loredano; era o único a quem o italiano confiara o seu segredo, oculto para os outros em quem receava ainda a influência de D. Antônio de Mariz.
O italiano deixou o aventureiro no seu trabalho e voltou pelo mesmo caminho; chegando à cozinha, sentiu-se sufocado por uma fumaça espessa que enchia todo o alpendre. Os aventureiros acordados de repente blasfemavam conta o autor de semelhante lembrança.
Quando Loredano no meio deles procurava indagar a causa do que sucedia, João Feio apareceu na entrada do alpendre.
Havia na sua fisionomia uma expressão terrível de cólera e ao mesmo tempo de espanto; de um salto aproximou-se do italiano e chegando-lhe a boca ao ouvido disse:
— Renegado e sacrílego, dou-te uma hora para ires entregar-te a D. Antônio de Mariz, e obter dele o nosso perdão e o teu castigo. Se o não fizeres dentro desse tempo, é comigo que te hás de avir.
O italiano fez um movimento de raiva; mas conteve-se:
— Amigo, o sereno transtornou-vos o juízo; ide deitar-vos. Boa noite, ou antes bom dia! A alvorada despontava no horizonte.
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