XI O FRADE
Saindo do quarto de Cecília Peri tomara pelo corredor que comunicava com o interior do edifício.
O índio, a cuja perspicácia nada escapava do que se passava no interior da casa, por mais insignificante que fosse, havia percebido o plano de Loredano desde a primeira pancada dada para a abertura da brecha.
Na véspera o som do ferro na parede tinha ido despertar a sua atenção na sala onde ele repousava um momento, deitado aos pés do leito de sua senhora; seu ouvido fino e delicado auscultara o seio da terra. Levantou-se de salto, e atravessando todo o edifício chegou, guiado pelas pancadas, ao lugar onde Loredano e o aventureiro começavam a abrir uma fenda no muro.
Em vez de atemorizar-se com esta nova audácia do italiano, o índio sorriu-se; a brecha que praticava seria a sua perdição, por que ia dar fácil passagem a ele, Peri.
Contentou-se pois em examinar todas as portas que comunicavam com a sala e pregá-las por dentro; seria um novo obstáculo que demoraria os aventureiros, e lhe daria tempo de sobra para exterminá-los.
Foi por isso que do quarto de Cecília cuja porta fechou sobre, caminhou direito à brecha e por ela penetrou na despensa dos aventureiros.
Era uma sala bastante espaçosa, onde havia uma mesa, algumas talhas e uma grande quartola de vinho; o índio mesmo às escuras chegou-se a cada um desses vasos; e por alguns instantes ouviu-se o fraco vascolejar do liquido que eles continham.
Então Peri viu uma luz que se aproximava; era Loredano e o seu companheiro.
A vista do italiano lhe gelou o sangue no coração. Tal ódio votava a esse homem abjeto e vil, que teve medo de si, medo de o matar. Isso fora agora uma imprudência; pois inutilizaria todo o seu plano.
Muita vez depois da noite em que Loredano penetrara na alcova de Cecília, Peri tivera ímpetos de ir vingar a injúria feita a sua senhora no sangue do italiano, para quem pensava que uma morte não era bastante punição.
Mas lembrava-se que não se pertencia; que precisava da vida para consumar sua obra salvando Cecília de tantos inimigos que a cercavam. E recalcava a vingança no fundo do coração.
Fez o mesmo então: cosido com a parede conseguiu apagar a vela. Ia sair, quando sentiu que o italiano tomava a porta.
Hesitou.
Podia lançar-se sobre Loredano e subjugá-lo; mas isso produziria uma luta e denunciaria a sua presença; era preciso que fugisse sem que restasse um só vestígio de sua passagem; a mais leve suspeita faria abortar o seu plano.
Teve uma idéia feliz: ergueu a mão molhada e tocou o rosto do italiano; enquanto este recuava para atirar a punhalada às escuras, o índio resvalou entre ele e a porta.
A faca de Loredano tinha -lhe ferido o braço esquerdo; não soltou porém nem um gemido, não fez um movimento que o traísse; ganhou o fundo do alpendre antes que o aventureiro voltasse com a luz.
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Mas Peri não estava contente; o seu sangue ia denunciá-lo; não lhe convinha de modo algum que o italiano suspeitasse que ele ali tinha estado.
Os morcegos que esvoaçavam espantados pelo teto do alpendre lembraram-lhe um excelente expediente; agarrou o primeiro que lhe passou ao alcance do braço, e abrindo-lhe uma cesura com a faca, soltou-o.
Ele sabia que o vampiro procuraria a luz, e iria esvoaçar em torno dos dois aventureiros; contava que as gotas de sangue que caiam de sua asa ferida os enganaria; a realidade correspondeu às suas previsões.
Apenas Loredano desapareceu, Peri continuou a execução do seu plano; chegou-se a um canto do alpendre onde havia um resto de fogo encoberto pela cinza, e atirou sobre ele alguma roupa dos aventureiros que ai estava a enxugar.
Este incidente, por insignificante que pareça, entrava nos planos de Peri; a roupa queimando-se devia encher a casa de fumaça, acordar os aventureiros e excitar-lhes a sede. Era justamente o que desejava o índio.
Satisfeito do resultado que obtivera, Peri atravessou a esplanada; ai porém foi obrigado a recuar, surpreendido do que via.
Um homem do lado de D. Antônio de Mariz e um aventureiro revoltado conversavam através da estacada que dividia esses dois campos inimigos; havia realmente motivo para que o índio se admirasse.
Não só isso era contra a ordem expressa de D. Antônio de Mariz, que proibira qualquer relação entre os seus homens e os revoltados, como contrariava o plano de Loredano, que temia ainda o respeito e o hábito de obediência que os aventureiros tinham para com o fidalgo.
O que se tinha passado antes, explicava esse acontecimento extraordinário.
O aventureiro a quem Loredano mandara rondar a esplanada, enquanto ele entrava, tinha começado o seu giro de uma ponta à outra do pátio.
Sempre que chegava junto da estacada, notava que do outro lado um homem se aproximava como ele, voltava, e se alongava pela beira da esplanada; adivinhou facilmente que era também uma sentinela.
João Feio era um franco e jovial companheiro, e não podia suportar o tédio de um passeio alta noite, no meio de um sono interrompido, sem uma pinga para beber, sem um camarada para conversar, sem uma distração enfim.
Para maior desprazer, uma das vezes que se aproximava da estacada, sentiu uma baforada de tabaco, e viu que o seu companheiro de guarda fumava.
Levou a mão ao bolso das bragas, e achou algumas folhas de fumo, mas não trazia o seu cachimbo; ficou desesperado, e decidiu dirigir-se ao outro.
— Olá, amigo! também fazeis a vossa guarda?
O homem voltou-se, e continuou o seu caminho sem dar resposta. No segundo giro o aventureiro atirou segunda isca.
— Felizmente o dia não tarda a raiar; não vos parece?
O mesmo silêncio que a primeira vez; o aventureiro contudo não desanimou, e na terceira volta retrucou:
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— Somos inimigos, camarada; mas isso não impede a um homem cortês de responder quando outro lhe fala.
Desta vez o silencioso sentinela voltou-se de todo:
— Antes da cortesia está a nossa santa religião, que manda a todo cristão não falar a um herege, a um réprobo, a um fariseu.