Dizendo que os Espíritos são inacessíveis às impressões da nossa matéria, queremos nos referir aos Espíritos muito elevados — cujo envoltório etéreo não encontra nada parecido neste mundo. O mesmo não acontece com aqueles cujo perispírito é mais denso; estes percebem os nossos sons e odores, não, porém, apenas por uma parte limitada do seu organismo, enquanto vivo. Podemos dizer que as vibrações moleculares se fazem sentir em todo o ser e assim chegam ao seu sensorium commune29
— que é o próprio
Espírito —, embora de uma maneira diferente e, talvez, também com uma impressão diferente, o que produz uma modificação na percepção. Eles escutam o som da nossa voz, porém nos compreendem sem o auxílio da palavra, somente pela transmissão do pensamento. E o que vem apoiar o que dizemos é que essa penetração é mais fácil quanto mais desmaterializado for o Espírito. Quanto à visão, ela é independente da nossa luz. A capacidade de 29 Sensorium commune: expressão latina, usada em medicina e em anatomia, referente à sede da sensação, da sensibilidade (por exemplo, o nariz é a sede do olfato). — N. T.
170 – Allan Kardec
ver é um atributo essencial da alma: para ela não existe obscuridade, contudo a visão é mais extensa e mais penetrante naqueles que estão mais depurados.
Então, a alma, ou o Espírito, tem em si próprio a faculdade de todas as percepções. Na vida corpórea, estas são obliteradas pela grosseria dos nossos órgãos; na vida extracorpórea elas são cada vez menos obstruídas, na medida em que o invólucro semimaterial se sutiliza.
Extraído do meio ambiente, esse invólucro varia conforme a natureza dos mundos. Ao passar de um mundo para outro, os Espíritos mudam de envoltório como nós mudamos de roupa quando passamos do inverno para o verão, ou do polo ao Equador. Os Espíritos mais elevados, quando vêm nos visitar, revestem-se então com o perispírito terrestre e a partir daí suas percepções se operam como nos Espíritos comuns; todos, porém — tanto os inferiores como os superiores — só escutam e só sentem o que queiram ouvir ou sentir. Não tendo os órgãos sensitivos, eles podem tornar suas percepções ativas ou nulas segundo a vontade deles; só há uma só coisa que eles são forçados a escutar: os conselhos dos Espíritos bons. A visão é sempre ativa, mas eles podem reciprocamente se tornar invisíveis uns aos outros. Conforme a categoria que ocupem, eles podem se ocultar dos que são inferiores a eles, mas não dos que lhes são superiores. Nos primeiros instantes após a morte, a visão do Espírito é sempre turbada e confusa, mas se aclara à medida que ele se desprende, e pode adquirir a mesma nitidez que tinha durante a vida, independentemente da sua penetração através dos corpos que são opacos para nós. Com relação à sua extensão através do espaço indefinito, no futuro e no passado, depende do grau de pureza e de elevação do Espírito.
Toda esta teoria — dirão — não é nada tranquilizadora. Pensávamos que, uma vez desembaraçados do nosso grosseiro envoltório, instrumento de nossas dores, nós não sofreríamos mais, e eis que vocês nos ensinam que ainda sofreremos; que seja de uma maneira ou de outra, esse sofrimento não será menor. Ah, sim, nós podemos sofrer ainda — e muito, e por um longo tempo —, mas nós também podemos deixar de sofrer, até mesmo desde o instante em que deixamos essa vida corporal.
Os sofrimentos deste mundo algumas vezes são independentes de nós, mas muitas vezes são as consequências da nossa vontade. Cada um se volte
171 – O Livro dos Espíritos
para a origem deles e verá que a maior parte deles resulta de causas que nós poderíamos evitar. Quantos males, quantas enfermidades o homem não deve aos seus excessos, à sua ambição, numa palavra, às suas paixões? O indivíduo que sempre vivesse com moderação, que não abusasse de nada, que fosse sempre simples nos gostos e modesto nos desejos, este se pouparia de muitas tribulações. O mesmo se dá com o Espírito: os sofrimentos pelos quais ele passa são sempre o resultado da maneira como viveu na Terra; é certo que já não terá mais nem gota nem reumatismo, mas terá outros sofrimentos que não são menores. Temos visto que seu sofrer resulta de ainda existirem os liames entre ele e a matéria; que quanto mais livre estiver da influência desta, noutras palavras, quanto mais for desmaterializado, menos sensações penosas ele terá. Ora, depende dele emancipar-se dessa influência já desde essa vida; ele tem seu livre-arbítrio e consequentemente tem como escolher entre o fazer ou não. Que ele domine suas paixões animais, que não alimente nem ódio, nem inveja, nem ciúme, nem orgulho; que não deixe ser dominado pelo egoísmo; que purifique sua alma para os bons sentimentos; que pratique a bondade; que não dê importância às coisas deste mundo além do que elas merecem; e então, mesmo sob seu invólucro corporal, ele já estará depurado, já estará desgarrado da matéria e, quando deixar esse corpo, não mais sofrerá sua influência. Os sofrimentos físicos que tenha sofrido não deixarão nele nenhuma recordação penosa; não restará nenhuma impressão desagradável, porque essas sensações só afetam o corpo e não a alma. Irá sentir-se feliz por estar livre deles e a paz da sua consciência o isentará de todo sofrimento moral. Nós temos interrogado sobre isso milhares de Espíritos que pertenceram na Terra a todas as faixas da sociedade e ocuparam todas as posições sociais; nós os estudamos em todos os períodos da sua vida espírita, a partir do instante em que eles abandonaram o corpo; acompanhamos passo a passo na vida de além-túmulo para observar as mudanças que se operavam neles, nas suas ideias, nas suas sensações e, sob esse aspecto, não foram os homens mais comuns aqueles que nos forneceram os elementos de estudos menos preciosos. Ora, sempre notamos que os sofrimentos estão relacionados com a conduta das quais eles sofrem as consequências, e que essa nova existência é a fonte de uma inefável felicidade para os que seguiram o bom
172 – Allan Kardec
caminho. Daí segue que aqueles que sofrem, é porque assim o quiseram, e que eles não devem se queixar senão a si mesmos — tanto no outro mundo, como neste.
Escolha das provas
258. No estado errante e antes de começar uma nova existência corporal, o Espírito tem a consciência e a previsão das coisas que lhe sucederão durante a vida?
“Ele próprio escolhe o gênero de provas a que queira se submeter, e é nisso que consiste o seu livre-arbítrio.”
258-a. — Então não é Deus quem lhe impõe as tribulações da vida como castigo?
“Nada ocorre sem a permissão de Deus, pois é ele quem estabelece todas as leis que regem o Universo. Agora, vão perguntar por que ele decretou esta lei e não aquela. Ao dar ao Espírito a liberdade de escolha, Deus lhe deixa toda a responsabilidade dos seus atos e de suas consequências; nada atrapalha o seu futuro; existe para ele o caminho do bem, assim como o do mal. Se ele sucumbir, restará uma consolação, que é a de que nem tudo acabou para ele, e que Deus, na sua bondade, lhe deixa livre para recomeçar o que ele tenha feito de mal. Além disso, devemos distinguir o que é obra da vontade de Deus e o que é da vontade do homem. Se um perigo lhes ameaça, não foram vocês quem criou esse perigo; foi Deus. Mas vocês têm o desejo de se exporem a esse perigo, por terem visto nele um meio de progredirem, e Deus o permitiu.”
259. Se o Espírito pode escolher o gênero de provas a que deva se submeter, será que todas as tribulações que experimentamos na vida foram previstas e escolhidas por nós?
“Todas não é o termo, porque não é o caso de se dizer que vocês escolheram e previram tudo o que lhes sucede no mundo, até às mínimas coisas; vocês escolheram apenas o gênero das provações, e os detalhes são a
173 – O Livro dos Espíritos
consequência da posição, e frequentemente a consequência de vossas próprias ações. Por exemplo, se o Espírito quis nascer entre malfeitores, ele sabia a quais arrastamentos ficaria exposto, mas não cada um dos atos que ele praticaria; esses atos são o efeito da sua vontade, ou do seu livre-arbítrio. O
Espírito sabe que escolhendo tal caminho ele terá tal gênero de desafio a enfrentar; portanto, sabe de que natureza serão as vicissitudes que encontrará, mas ele desconhece se será esse ou aquele outro evento. Os acontecimentos secundários nascem das circunstâncias e da força das coisas.
Somente são previstos os eventos principais, aqueles que influenciam no seu destino. Se tu tomas uma rota repleta de percalços, tu sabes que precisarás ter grandes precauções, por haver chance de cair, mas tu ignoras em que ponto cairás, e bem pode acontecer que tu nem caias, se fores prudente o bastante.
Se, ao passar numa rua, uma telha cair na tua cabeça, não creia que isso estava escrito, como vulgarmente se diz.”
260. Como pode o Espírito desejar nascer entre gente de má vida?
“É necessário que ele seja enviado a um meio onde possa passar pela prova que pediu. Pois bem, deve haver aí então uma analogia; para lutar contra o instinto da criminalidade, é preciso que se encontre em contato com gente desse tipo.”
260-a. — Se não existisse gente de má vida na Terra, então o Espírito não encontraria nela o meio necessário para certas provas?
“E isso seria de se lastimar? É o que acontece nos mundos superiores, onde o mal não tem acesso; é por isso que nesses mundos só há Espíritos bons. Façam com que em breve o mesmo se dê na Terra.”
261. Nas provações pelas quais o Espírito deve passar para chegar à perfeição, ele precisa sofrer todos os tipos de tentações? Ele deve passar por todas as circunstâncias que possam excitar nele o orgulho, a inveja, a avareza, a sensualidade etc.?
“Absolutamente não, pois vocês bem sabem que há Espíritos que desde o começo tomam um caminho que os livra de muitas provas. Mas aquele que se deixa arrastar para o mau caminho corre todos os perigos dessa rota. Por
174 – Allan Kardec
exemplo, um Espírito pode pedir a riqueza, e ela pode lhe ser concedida; então, conforme o seu caráter, ele poderá tornar-se avarento ou esbanjador, egoísta ou generoso, ou ainda se lançar a todos os gozos da sensualidade; mas não é de se dizer que ele obrigatoriamente deverá passar pela fileira de todas estas predisposições.”
262. Como o Espírito que em sua origem é simples, ignorante e sem experiência, pode escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável por essa escolha?
“Deus supre a inexperiência deste Espírito, traçando o caminho que ele deva seguir, como se faz com uma criancinha desde o berço. Porém, pouco a pouco ele o deixa livre para escolher na medida em que o seu livre-arbítrio se desenvolve, e só então é que frequentemente ele se transvia ao tomar o mau caminho, se não ouvir os conselhos dos bons Espíritos. A isso é que se pode chamar a queda do homem.”
262-a. — Quando o Espírito desfruta do seu livre-arbítrio, a escolha da existência corporal dependerá sempre exclusivamente de sua vontade, ou essa existência bem pode lhe ser imposta pela vontade de Deus, como expiação?
“Deus sabe esperar, não apressa a expiação. Todavia, Deus pode impor uma existência a um Espírito, quando este — pela sua inferioridade ou má vontade — não está apto a compreender o que poderia lhe ser mais proveitoso, e quando vê que tal existência pode servir para a purificação e o avanço do Espírito, ao mesmo tempo em que ele encontre nela uma expiação.”
263. O Espírito faz a sua escolha imediatamente após a morte?
“Não, muitos acreditam na eternidade das penas; nós já lhes dissemos: isso é uma punição.”
264. O que orienta o Espírito na escolha das provações que ele queira sofrer?