“Ele escolhe aquelas que podem ser para ele uma expiação, pela natureza das suas faltas, e o faz avançar mais depressa. Uns podem, portanto, impor a si mesmos uma vida de misérias e privações para tentar suportá-las
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com coragem; outros preferem experimentar as tentações da fortuna e da autoridade, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que se pode fazer delas, e pelas más paixões que essas tentações desenvolvem; outros, enfim, querem ser testados pelas lutas que terão de sustentar em contato com o vício.”
265. Se determinados Espíritos escolhem o contato com o vício como provação, haveria outros que o escolham por simpatia e pelo desejo de viverem num meio conforme aos seus gostos, ou para se entregarem materialmente às inclinações materiais?
“Há sim, isso é certo, mas somente entre aqueles cujo senso moral ainda está pouco desenvolvido. A provação vem por si mesma e eles a sofrem por
mais tempo. Cedo ou tarde eles compreendem que a satisfação das paixões brutais lhes impõe consequências deploráveis, que eles sofrerão durante um tempo que lhes parecerá eterno, e Deus os deixará nessa situação, até que tenham consciência de seu erro e que eles próprios peçam para resgatá-lo mediante provas úteis.”
266. Não parece natural que se escolha as provas menos penosas?
“Para vocês, sim; para o Espírito, não. Quando ele se desliga da matéria, a ilusão acaba e ele pensa de outra forma.”
O homem na Terra, e colocado sob a influência das ideias carnais, nada vê nessas provas exceto o lado penoso. Tal a razão de lhe parecer natural escolher aquelas que, do seu ponto de vista, podem aliar-se aos seus gozos materiais.
Contudo, na vida espiritual, ele compara esses gozos passageiros e grosseiros com a inalterável felicidade que ele vislumbra, e desde então, que lhe importam alguns sofrimentos passageiros? Assim, pois, o Espírito pode escolher a prova mais rude e, conseguintemente, a mais angustiada existência, na esperança de chegar mais depressa a uma situação melhor, como o doente escolhe frequentemente o remédio mais desagradável para se curar mais rapidamente. Aquele que tenta ligar seu nome à descoberta de um país desconhecido não procura uma trilha florida, pois sabe dos perigos que corre, mas também conhece a glória que o espera, se for bem-sucedido.
A doutrina da liberdade na escolha das nossas existências e das provas que
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devamos sofrer deixa de parecer extraordinária se considerarmos que os Espíritos, desprendidos da matéria, apreciam as coisas de um modo diverso da maneira que fazemos. Eles definem a meta, que é muito mais importante para eles dos que os gozos fugitivos do mundo. Após cada existência ele veem o passo que deram e compreendem o que ainda lhes falta em pureza para atingirem aquela meta: eis por que se submeterem voluntariamente a todas as vicissitudes da vida corpórea, solicitando pessoalmente aquelas que possam lhes fazer chegar mais rapidamente.
Portanto, não há motivo para se espantar em ver o Espírito não dar preferência à existência mais suave. Tal vida isenta de amarguras, ele não pode usufruir no seu estado de imperfeição; ele a vislumbra, e é para alcançá-la que ele procura se melhorar.
Aliás, nós não vemos todos os dias exemplos de tais escolhas? O homem que trabalha uma parte de sua vida, sem trégua nem descanso, para ajuntar o que lhe assegura o bem-estar, faz o que com isso, senão cumprir uma tarefa que impôs a si mesmo em vista de um melhor futuro? O militar que se oferece para uma perigosa missão, o aventureiro que afronta perigos não menores, no interesse da ciência ou da sua fortuna, o que fazem também estes, senão se sujeitarem a provas voluntárias que devem lhes proporcionar honras e benefícios, se foram bem-sucedidos? Ao que o homem não se submete ou se expõe pelo seu interesse ou pela sua glória? Todos os concursos não são também provas voluntárias às quais os concorrentes se subordinam em vista de se elevar na carreira que escolheram?
Ninguém chega a qualquer posição social transcendente nas ciências, nas artes ou na indústria senão passando pela fileira das posições inferiores, que são outras tantas provas. A vida humana é então a cópia da vida espiritual; nela nós nos deparamos em menor escala todas as mesmas peripécias. Ora, se na vida terrena muitas vezes escolhemos provas das mais rudes, visando um objetivo mais elevado, por que o Espírito — que enxerga mais longe que o corpo, e para quem a vida corporal não é mais do que um incidente passageiro — não faria a escolha de uma existência sofrível e laboriosa, já que ela deve conduzi-lo a uma felicidade eterna? Aqueles que dizem que, se o homem tem como escolher sua existência, eles pedirão para serem príncipes ou milionários, estes são como os míopes que apenas veem aquilo em que tocam, ou como crianças gulosas a quem perguntamos o que elas querem ser e então respondem que querem ser pasteleiros ou confeiteiros.
Tal é o viageiro que, nas profundezas do vale escurecido pelo nevoeiro, não vê nem a extensão nem os pontos extremos da sua rota; chegando ao cume da
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montanha, ele toma vista do caminho que já percorreu e o quanto lhe resta a percorrer; vê o ponto final de sua jornada, vê os obstáculos que ainda terá de transpor e pode então traçar os meios mais seguros de chegar ao seu objetivo. O
Espírito encarnado é como este viajante na ladeira da montanha; desprendido dos laços terrenos, ele se comporta como aquele que já está no topo. Para o viajante, o objetivo é o repouso após o cansaço; para o Espírito, é a felicidade suprema após as tribulações e as provações.
Todos os Espíritos dizem que na erraticidade eles pesquisam, estudam e observam, a fim de fazerem suas escolhas. Não dispomos de um exemplo disso na vida corporal? Nós muitas vezes não levamos anos procurando a carreira pela qual nos decidimos livremente, pois acreditamos que esta seja a mais apropriada para facilitar o nosso caminho? Quando fracassamos numa carreira, procuramos outra.
Cada carreira que abraçamos representa uma fase, um período da vida. Não empregamos a cada dia em procurar o que faremos no dia seguinte? Ora, o que significam as diversas existências corporais para o Espírito, senão fases, períodos e dias da sua vida espírita? Pois esta vida espírita, como nós sabemos, que é a sua vida normal, visto que sua vida corpórea é transitória e passageira.
267. O Espírito pode fazer suas escolhas durante sua vida corpórea?
“Seu desejo pode ter influência, dependendo da intenção. Contudo, enquanto Espírito ele frequentemente vê as coisas de modo bem diferente. É
o Espírito quem faz essa escolha, mas ainda assim ele pode fazê-la nesta vida material, pois o Espírito sempre tem desses momentos em que ele fica independente da matéria que ele habita.”
267-a. — Muita gente deseja grandezas e riquezas, e isso seguramente não como expiação nem como prova, não é?
“Sem dúvida. É a matéria que deseja essa grandeza para gozar dela, e é o Espírito que a deseja para conhecer suas vicissitudes.”
268. Até que chegue ao estado de perfeita pureza, o Espírito tem que passar constantemente por provas?
“Sim, mas elas não são como vocês as entendem, pois só consideram provas as tribulações materiais. Ora, o Espírito tendo chegado a um certo
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grau, embora não seja ainda perfeito, já não tem que sofrer provas, mas continua com os deveres que o ajudam no seu aperfeiçoamento — o que não é nada penoso para ele, a não ser os de auxiliar os outros a se aperfeiçoarem.”
269. O Espírito pode se enganar quanto à eficácia da prova que escolheu?
“Ele pode escolher uma que esteja acima de suas forças, e então ele fracassa. Pode também escolher alguma que não lhe beneficie em nada, tal como acontece quando ele procura um tipo de vida ociosa e inútil. Mas, então, uma vez de volta ao mundo dos Espíritos, ele se apercebe que não ganhou nada e pede outra para recuperar o tempo perdido.”
270. A que se devem atribuir as vocações de certas pessoas e a vontade de seguir uma determinada carreira em vez de outra?
“Parece-me que vocês mesmos podem responder a essa pergunta. Isso não é a consequência de tudo o que temos dito sobre a escolha das provas e sobre o progresso realizado numa existência anterior?”
271. No estado errante, o Espírito estudando as diversas condições nas quais poderá progredir, como ele pensa conseguir isso, por exemplo, nascendo entre canibais?
“Não são os Espíritos adiantados aqueles que nascem entre os canibais, mas os Espíritos da mesma natureza dos canibais, ou os que são inferiores a estes.”
Nós sabemos que os antropófagos30 do nosso mundo não estão no último degrau da escala e que há mundos onde a brutalidade e a ferocidade não têm analogia com a Terra. Portanto, esses Espíritos são ainda mais inferiores aos mais inferiores do nosso mundo, e nascer entre os nossos selvagens representa para eles um progresso, como seria um progresso para os antropófagos do nosso mundo exercerem entre nós uma profissão que lhes obrigasse a derramar sangue. Se não visam mais alto, é porque sua inferioridade moral não lhes permite compreender um progresso mais completo. O Espírito não pode avançar senão gradativamente; 30 Antropófago: canibal, aquele (diz-se especialmente do ser humano) que se alimenta de carne humana. — N. T.
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ele não pode transpor de um salto a distância que separa a barbárie da civilização, e nós vemos nisso uma das necessidades da reencarnação, que verdadeiramente corresponde à justiça de Deus. De outro modo, que seria desses milhões de seres que morrem todos os dias no último estágio de degradação, se eles não tivessem os meios de alcançar a superioridade? Por que Deus os privaria dos favores concedidos aos outros homens?