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Não o quero, Sr. Zuzarte. Na minha sepultura não quero elogios. Se os meus amigos, os meus patrícios entenderem que eu fiz alguns serviços, têm outros meios para os comemorar: lá têm a imprensa, o comunicado, o necrológio, a poesia mesmo! pela minha vontade quero apenas sobre a lápide lisa, em letras negras, o meu nome — com a minha designação de Conselheiro

— a data do meu nascimento e a data do meu óbito.

E com um tom demorado, de reflexão:

Não me oponho todavia a que inscrevam por baixo, em letras menores:

"Orai por ele!"

Houve um silêncio comovido, e à porta uma voz fina, disse:

Dão licença?

Oh, Ernestinho!.. — exclamou Jorge.

Com um passo miudinho e rápido, Ernestinho veio abraçá-lo pela cintura:

Eu soube que tu partias, primo Jorge. . Como está, prima Luísa?

Era primo de Jorge. Pequenino, linfático, os seus membros franzinos, ainda quase tenros, davam-lhe um aspeto débil de colegial; o buço, delgado, empastado em cera mostacha, arrebitava-se aos cantos em pontas afiadas como agulhas; e na sua cara chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com um quebrado langoroso. Trazia sapatos de verniz com grandes laços de fita; sobre o colete branco, a cadeia do relógio sustentava um medalhão enorme, de ouro, com frutos e flores esmaltados em relevo. Vivia com uma actrizita do Ginásio, uma magra, cor de melão, com o cabelo muito riçado, o ar tísico — e escrevia para o teatro. Tinha traduções, dos originais num acto, uma comédia, em calembures. Ultimamente trazia em ensaios nas Variedades uma obra considerável, um drama em cinco actos, a Honra e paixão. Era a sua estreia séria. E desde então, viam-no sempre muito atarefado, os bolsos inchados de manuscritos, com localistas, com atores, muito pródigo de cafés e de conhaques, o chapéu ao lado, descorado e dizendo a todos: "Esta vida mata-me!" Escrevia todavia por paixão entranhada pela Arte — porque era empregado na alfândega, com bom vencimento, e tinha quinhentos mil réis de renda das suas inscrições. A Arte mesma, dizia, obrigava-o a desembolsos;

para o acto do baile da Honra e paixão mandara fazer, à sua custa, botas de verniz para o galã, botas de verniz para o pai nobre! O seu nome de família era Ledesma.

Deram-lhe um lugar, e Luísa notou logo, pousando o bordado, que estava abatido! Queixou-se então das suas fadigas: os ensaios arrasavam-no; tinha turras com o empresário; na véspera vira-se forçado a refazer todo o final de um acto! Todo!

E tudo isto — acrescentou muito exaltado — porque é um pelintra, um parvo, e quer que se passe numa sala o acto que se passava num abismo!

Num quê? — perguntou surpreendida D. Felicidade.

O Conselheiro, muito cortês, explicou:

Num abismo, D. Felicidade, num despenhadeiro. Também se diz, em bom vernáculo, um vórtice. — Citou: "Num espumoso vórtice se arroja..."

Num abismo!? — perguntaram. — Por quê?

O Conselheiro quis conhecer o lance.

Ernestinho, radioso, esboçou largamente o enredo: — Era uma mulher casada. Em Sintra tinha-se encontrado com um homem fatal, o Conde de Monte Redondo. O marido, arruinado, devia cem contos de réis ao jogo.

Estava desonrado, ia ser preso. A mulher, louca, corre a umas ruínas acasteladas, onde habita o conde, deixa cair o véu, conta-lhe a catástrofe. O

conde lança o seu manto aos ombros, parte, chega no momento em que os guardas vão levar o homem. — É uma cena muito comovente — dizia — é de noite, ao luar! — O conde desembuça-se, atira uma bolsa de ouro aos pés dos guardas, gritando-lhes: "Saciai-vos, abutres!. ."

Belo final! — murmurou o Conselheiro.

Enfim — acrescentou Ernesto, resumindo —, aqui há um enredo complicado: o Conde de Monte Redondo e a mulher amam-se, o marido descobre, arremessa todo o seu ouro aos pés do conde, e mata a esposa.

Como? — perguntaram.

Atira-a ao abismo. E no quinto acto. O conde vê, corre, atira-se também. O marido cruza os braços e dá uma gargalhada infernal. Foi assim que eu imaginei a coisa!

Calou-se, ofegante; e, abanando-se com o lenço, rolava em redor os seus olhos langorosos, prateados como os de um peixe morto.

É uma obra de cunho, embatem-se grandes paixões! — disse o Conselheiro, passando as mãos sobre a calva. — Os meus parabéns, Sr.

Ledesma!

Mas que quer o empresário? — perguntou Julião, que escutara de pé, atónito — que quer ele? Quer o abismo num primeiro andar, mobilado pelo Gardé?

Ernestinho voltou-se, muito afetuosamente:

Não, Sr. Zuzarte — a sua voz era quase meiga —, quer o desfecho numa sala. De modo que eu — e fazia um gesto resignado — a gente tem de condescender, tive de escrever outro final. Passei a noite em claro. Tomei três chávenas de café!. .

O Conselheiro acudiu, com a mão espalmada:

Cuidado, Sr. Ledesma, cuidado! Prudência com esses excitantes! Por quem é, prudência!

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