Se eu consentir, minha rica... É que é uma questão de gratidão, para mim!
Ficaram calados. O cuco cantou meio-dia.
—
Bem, vou à vida — disse Jorge. Chegou-se ao pé dela, tomou-lhe a cabeça entre as mãos.
—
Viborazinha! — murmurou, fitando-a muito meigamente.
Ela riu. Ergueu para ele os seus magníficos olhos castanhos, luminosos e meigos. Jorge enterneceu-se, pôs-lhe sobre as pálpebras dois beijos chilreados.
E torcendo-lhe o beicinho, com uma meiguice:
—
Queres alguma coisa de fora, amor?
—
Que não viesse muito tarde.
Ia deixar uns bilhetes, ia numa tipoia, era um pulo...
E saiu, feliz, cantando com a sua boa voz de barítono: Dia dei oro,
Dei mondo signor
La la ra, la ra
Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! O
numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música!
Sacudiu a chinelinha; esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas:
— em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a lavadeira perdera. .
Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detrás de uma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na poltrona, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada.
Era a Dama das camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre as ogivas os brasões do clã, mobilados com arcas góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heroicas, que o vento do lago agita e faz viver; e amara Ervandalo, Morton e lvanhoé, ternos e graves, tendo sobre o gorro a pena de águia, presa ao lado pelo cardo
de Escócia de esmeraldas e diamantes. Mas agora era o moderno que a cativava: Paris, as suas mobílias, as suas sentimentalidades. Ria-se dos trovadores, exaltara-se por Mr. de Camors; e os homens ideais apareciam-lhe de gravata branca, nas ombreiras das salas de baile, com um magnetismo no olhar, devorados de paixão, tendo palavras sublimes. Havia uma semana que se interessava por Margarida Gautier; o seu amor infeliz dava-lhe uma melancolia enevoada; via-a alta e magra, com o seu longo xale de caxemira, os olhos negros cheios de avidez da paixão e dos ardores da tísica; nos nomes mesmo do livro — Júlia Duprat, Armando, Prudência, achava o sabor poético de uma vida intensamente amorosa; e todo aquele destino se agitava, como numa música triste, com ceias, noites delirantes, aflições de dinheiro, e dias de melancolia no fundo de um cupê quando nas avenidas do Bois, sob um céu pardo e elegante, silenciosamente caem as primeiras neves.
—
Até logo, Zizi — gritou Jorge do corredor, ao sair.
—
Olha!
Ele veio com a bengala debaixo do braço, apertando as luvas.
Não apareças muito tarde, hem? Escuta, traz-me uns bolos do Baltresqui para a D. Felicidade. Ouve. Vê se passas pela M.me François que me mande o chapéu. Escuta.
—
Que mais, bom Deus?
—
Ah! Não! Era para ires pelo livreiro que me mande mais romances. .
Mas está fechado!
Foi com duas lágrimas a tremer-lhe nas pálpebras que acabou as páginas da Dama das camélias. E estendida na poltrona, com o livro caído no regaço, fazendo recuar a película das unhas, pôs-se a cantar baixinho, com ternura, a ária final da Traviata:
—
Addio, dei passato. .
Lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do primo Basílio. .
Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. — Fora o seu primeiro namoro, o primo Basílio! Tinha ela então dezoito anos! Ninguém o sabia, nem Jorge, nem Sebastião. .
De resto fora uma criancice; ela mesma, às vezes, ria, recordando as pieguices ternas de então, certas lágrimas exageradas! Devia estar mudado o primo Basílio. Lembrava-se bem dele — alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado, o olhar atrevido, e um jeito de meter as mãos nos bolsos das calças fazendo tilintar o dinheiro e as chaves! Aquilo começara em Sintra, por grandes partidas de bilhar muito alegres, na quinta do tio João de Brito, em Colares. Basílio tinha chegado então da Inglaterra: vinha muito bife, usava gravatas escarlates passadas num anel de ouro, fatos de flanela branca, espantava Sintra! Era na sala de baixo pintada a oca, que tinha um ar antigo e morgado; uma grande porta envidraçada abria para o jardim, sobre três