"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » ,,O Primo Basílio'' - de Eça de Queirós

Add to favorite ,,O Primo Basílio'' - de Eça de Queirós

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detrás de uma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na poltrona, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada.

Era a Dama das camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre as ogivas os brasões do clã, mobilados com arcas góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heroicas, que o vento do lago agita e faz viver; e amara Ervandalo, Morton e lvanhoé, ternos e graves, tendo sobre o gorro a pena de águia, presa ao lado pelo cardo

de Escócia de esmeraldas e diamantes. Mas agora era o moderno que a cativava: Paris, as suas mobílias, as suas sentimentalidades. Ria-se dos trovadores, exaltara-se por Mr. de Camors; e os homens ideais apareciam-lhe de gravata branca, nas ombreiras das salas de baile, com um magnetismo no olhar, devorados de paixão, tendo palavras sublimes. Havia uma semana que se interessava por Margarida Gautier; o seu amor infeliz dava-lhe uma melancolia enevoada; via-a alta e magra, com o seu longo xale de caxemira, os olhos negros cheios de avidez da paixão e dos ardores da tísica; nos nomes mesmo do livro — Júlia Duprat, Armando, Prudência, achava o sabor poético de uma vida intensamente amorosa; e todo aquele destino se agitava, como numa música triste, com ceias, noites delirantes, aflições de dinheiro, e dias de melancolia no fundo de um cupê quando nas avenidas do Bois, sob um céu pardo e elegante, silenciosamente caem as primeiras neves.

Até logo, Zizi — gritou Jorge do corredor, ao sair.

Olha!

Ele veio com a bengala debaixo do braço, apertando as luvas.

Não apareças muito tarde, hem? Escuta, traz-me uns bolos do Baltresqui para a D. Felicidade. Ouve. Vê se passas pela M.me François que me mande o chapéu. Escuta.

Que mais, bom Deus?

Ah! Não! Era para ires pelo livreiro que me mande mais romances. .

Mas está fechado!

Foi com duas lágrimas a tremer-lhe nas pálpebras que acabou as páginas da Dama das camélias. E estendida na poltrona, com o livro caído no regaço, fazendo recuar a película das unhas, pôs-se a cantar baixinho, com ternura, a ária final da Traviata:

Addio, dei passato. .

Lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do primo Basílio. .

Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. — Fora o seu primeiro namoro, o primo Basílio! Tinha ela então dezoito anos! Ninguém o sabia, nem Jorge, nem Sebastião. .

De resto fora uma criancice; ela mesma, às vezes, ria, recordando as pieguices ternas de então, certas lágrimas exageradas! Devia estar mudado o primo Basílio. Lembrava-se bem dele — alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado, o olhar atrevido, e um jeito de meter as mãos nos bolsos das calças fazendo tilintar o dinheiro e as chaves! Aquilo começara em Sintra, por grandes partidas de bilhar muito alegres, na quinta do tio João de Brito, em Colares. Basílio tinha chegado então da Inglaterra: vinha muito bife, usava gravatas escarlates passadas num anel de ouro, fatos de flanela branca, espantava Sintra! Era na sala de baixo pintada a oca, que tinha um ar antigo e morgado; uma grande porta envidraçada abria para o jardim, sobre três

degraus de pedra. Em roda do repuxo havia romãzeiras, onde ele apanhava flores escarlates. A folhagem verde escura e polida dos arbustos de camélias fazia ruazinhas sombrias; pedaços de sol faiscavam, tremiam na água do tanque; duas rolas, numa gaiola de vime, arrulhavam docemente; — e, no silêncio aldeão da quinta, o ruído seco das bolas de bilhar tinha um tom aristocrático.

Depois, vieram todos os episódios clássicos dos amores lisboetas passados em Sintra: os passeios em Sitiais ao luar, devagar, sobre a relva pálida, com grandes descansos calados no Penedo da Saudade, vendo o vale, as areias ao longe, cheias de uma luz saudosa, idealizadora e branca; as sestas quentes, nas sombras da Penha Verde, ouvindo o rumor fresco e gotejante das águas que vão de pedra em pedra; as tardes na várzea de Colares, remando num velho bote, sobre a água escura da sombra dos freixos — e que risadas quando iam encalhar nas ervagens altas, e o seu chapéu de palha se prendia aos ramos baixos dos choupos!

Sempre gostara muito de Sintra! Logo ao entrar os árvoredos escuros e murmurosos do Ramalhão lhe davam uma melancolia feliz!

Tinham muita liberdade, ela e o primo Basílio. A mamã, coitadinha, toda cismática, com reumatismo, egoísta, deixava-os, sorria, dormitava; Basílio era rico, então; chamava-lhe tia Jojó, trazia-lhe cartuchos de doce. .

Veio o inverno, e aquele amor foi-se abrigar na velha sala forrada de papel sangue-de-boi da Rua da Madalena. Que bons serões ali! A mamã ressonava baixo com os pés embrulhados numa manta, o volume da Biblioteca das Damas caído sobre o regaço. E eles, muito chegados, muito felizes no sofá! O

sofá! Quantas recordações! Era estreito e baixo, estofado de casimira clara, com uma tira ao centro, bordada por ela, amores-perfeitos amarelos e roxos sobre um fundo negro. Um dia veio o final. João de Brito, que fazia parte da firma Bastos & Brito, faliu. A casa de Almada, a quinta de Colares foram vendidas.

Basílio estava pobre: partiu para o Brasil. Que saudades! Passou os primeiros dias sentada no sofá querido, soluçando baixo, com a fotografia dele entre as mãos. Vieram então os sobressaltos das cartas esperadas, os recados impacientes ao escritório da Companhia, quando os paquetes tardavam..

Passou um ano. Uma manhã, depois de um grande silêncio de Basílio, recebeu da Bahia uma longa carta, que começava: "Tenho pensado muito e entendo que devemos considerar a nossa inclinação como uma criancice. ."

Desmaiou logo. Basílio afetava muita dor em duas laudas cheias de explicações: que estava ainda pobre; que teria de lutar muito antes de ter para dois; o clima era horrível; não a queria sacrificar, pobre anjo; chamava-lhe

"minha pomba" e assinava o seu nome todo, com uma firma complicada.

Viveu triste durante meses. Era no inverno; e sentada à janela, por dentro dos vidros, com o seu bordado de lã, julgava-se desiludida, pensava no convento, seguindo com um olhar melancólico os guarda-chuvas gotejantes que passavam sob as cordas de água; ou sentando-se ao piano, ao anoitecer, cantava Soares de Passos:

Ai! adeus, acabaram-se os dias

Que ditoso vivi ao teu lado. .

Ou o final da Traviata, ou o Fado do Vimioso, muito triste, que ele lhe ensinara.

Mas então o catarro da mamã agravou-se; vieram os sustos, as noites veladas.

Na convalescença foram para Belas; ligou-se ali muito com as Cardosos, duas irmãs magras, estouvadas e esguias, sempre coladas uma à outra, com um passinho trotado e seco, como um casal de galgos. O que riam, Jesus! O que falavam dos homens! Um tenente de artilharia tinha-se apaixonado por ela.

Era vesgo, mandou-lhe uns versos, "Ao lírio de Belas": Sobre a encosta da colina

Cresce o lírio virginal. .

Foi um tempo muito alegre, cheio de consolações.

Quando voltaram no inverno tinha engordado, trazia boas cores. E um dia, tendo achado numa gaveta uma fotografia que logo ao princípio Basílio lhe mandara da Bahia, de calça branca e chapéu panamá, fitou-a, encolhendo os ombros:

— E o que eu me ralei por esta figura! Que tola!

Tinham passado três anos quando conheceu Jorge. Ao princípio não lhe agradou. Não gostava dos homens barbados; depois percebeu que era a primeira barba, fina, rente, muito macia decerto; começou a admirar os seus olhos, a sua frescura. E sem o amar sentia ao pé dele como uma fraqueza, uma dependência e uma quebreira, uma vontade de adormecer encostada ao seu ombro, e de ficar assim muitos anos, confortável, sem receio de nada. Que sensação quando ele lhe disse: "Vamos casar, hem!" Viu de repente o rosto barbado, com os olhos muito luzidios, sobre o mesmo travesseiro, ao pé do seu! Fez-se escarlate, Jorge tinha-lhe tomado a mão; ela sentia o calor daquela palma larga penetrá-la, tomar posse dela; disse que sim; ficou como idiota, e sentia debaixo do vestido de merino dilatarem-se docemente os seus seios.

Estava noiva, enfim! Que alegria, que descanso para a mamã!

Casaram às oito horas, numa manhã de nevoeiro. Foi necessário acender luz para lhe pôr a coroa e o véu de tule. Todo aquele dia lhe aparecia como enevoado, sem contornos, à maneira de um sonho antigo — onde destacava a cara balofa e amarelada do padre, e a figura medonha de uma velha, que estendia a mão adunca, com uma sofreguidão colérica, empurrando, rogando pragas, quando, à porta da igreja, Jorge comovido distribuía patacos. Os sapatos de cetim apertavam-na. Sentia-se enjoada da madrugada, fora necessário fazer-lhe chá verde muito forte. E tão cansada à noite naquela casa nova, depois de desfazer os seus baús! Quando Jorge apagou a vela, com um sopro trémulo, os luminosos faiscavam, corriam-lhe diante dos olhos.

Mas era o seu marido, era novo, era forte, era alegre; pôs-se a adorá-lo. Tinha uma curiosidade constante da sua pessoa e das suas coisas, mexia-lhe no cabelo, na roupa, nas pistolas, nos papéis. Olhava muito para os maridos das outras, comparava, tinha orgulho nele. Jorge envolvia-a em delicadezas de amante, ajoelhava-se aos seus pés, era muito dengueiro. E sempre de bom humor, com muita graça, mas nas coisas da sua profissão ou do seu brio tinha severidades exageradas, e punha então nas palavras, nos modos uma solenidade carrancuda. Uma amiga dela, romanesca, que via em tudo dramas, tinha-lhe dito: "É homem para te dar uma punhalada". Ela que não conhecia ainda então o temperamento plácido de Jorge, acreditou, e isso mesmo criou uma exaltação no seu amor por ele. Era o seu tudo — a sua força, o seu fim, o seu destino, a sua religião, o seu homem! Pôs-se a pensar, o que teria sucedido

se tivesse casado com o primo Basílio. Que desgraça, hem! Onde estaria?

Perdia-se em suposições de outros destinos, que se desenrolavam, como panos de teatro: via-se no Brasil, entre coqueiros, embalada numa rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios!

Está ali a senhora D. Leopoldina — veio dizer Juliana.

Luísa ergueu-se surpreendida:

Are sens