—
É por causa de ti! É por causa dos vizinhos! É por causa da decência!
—
Mas foi a Juliana... — balbuciou Luísa.
—
Mandasse-a sair outra vez. Que estavas fora! Que estavas na China!
Que estavas doente!
Parou, com um tom desconsolado, abrindo os braços:
—
Minha rica filha, é que todo o mundo a conhece. É a Quebrais! É a Pão e Queijo! É uma vergonha!
Citava-lhe os seus amantes, exasperado: o Carlos Viegas, o magro, de bigode caído, que escrevia comédias para o Ginásio! O Santos Madeira, o picado das bexigas, com uma gaforinha! O Melchior Vadio, um gingão desossado, com
um olhar de carneiro morto, sempre a fumar numa enorme boquilha! O Pedro Câmara, o bonito! O Mendonça dos calos! Tutti quanti!
E encolhendo os ombros, exasperado:
—
Como se eu não percebesse que ela esteve aqui! Só pelo cheiro! Este horrível cheiro de feno! Vocês foram criadas juntas, etc.; tudo isso é muito bom. Hás de desculpar, mas se a encontro na escada, corro-a! Corro-a!
Parou um momento, e comovido:
—
Ora, vamos, Luísa, confessa. Tenho ou não razão?
Luísa punha os brincos, ao espelho, atarantada:
—
Tens — disse.
—
Ah! Bem!
E saiu, furioso.
Luísa ficou imóvel. Uma lágrimazinha redonda, clara, rolava-lhe pela asa do nariz Assoou-se muito doloridamente. Aquela Juliana! Aquela bisbilhoteira!
De má! Para fazer cizânia!
Veio-lhe então uma cólera. Foi ao quarto dos engomados, atirou com a porta:
—
Para que foi você dizer quem esteve ou quem deixou de estar?
Juliana, muito surpreendida, pousou o ferro:
—
Pensei que não era segredo, minha senhora.
—
Está claro que não! Tola! Quem lhe diz que era segredo? E para que mandou entrar? Não lhe tenho dito muitas vezes que não recebo a senhora D.
Leopoldina?
—
A senhora nunca me disse nada — replicou, toda ofendida, cheia de verdade.
—
Mente! Cale-se!
Voltou-lhe as costas; veio para o quarto, muito nervosa, foi encostar-se à vidraça.
O sol desaparecera; na rua estreita havia uma sombra igual, de tarde sem vento; pelas casas, de uma edificação velha, escuras estavam abertas as varandas onde em vasos vermelhos se mirrava alguma velha planta miserável, manjericão ou cravo; ouvia-se, no teclado melancólico de um piano, a Oração de uma virgem, tocada por alguma menina, no sentimentalismo vadio do domingo; e na sua janela, em frente, as quatro filhas do Teixeira Azevedo, magrinhas, com os cabelos muito riçados, as olheiras pisadas, passavam a sua tarde de dia santo, olhando para a rua, para o ar, para as janelas vizinhas, cochichando se viam passar um homem — ou debruçadas, com uma atenção idiota, faziam pingar saliva sobre as pedras da calçada.
Jorge tinha razão, coitado! pensava Luísa. Mas, também, que podia ela fazer?
Já não ia à casa de Leopoldina, tirara o seu retrato do álbum da sala, vira-se obrigada a confessar-lhe a repugnância de Jorge, tinham chorado ambas, até!
Coitada! Só a recebia de longe a longe, uma raridade, um momento! E enfim, depois de ela estar na sala, não a havia de ir empurrar pela escada abaixo!
Um homem grosso, de pernas tortas, curvado sob um realejo, apareceu então ao alto da rua; as suas barbas pretas tinham um aspeto feroz; parou, pôs-se a voltear a manivela, levantando em redor, para as janelas, um sorriso triste de dentes brancos e a "Casta Diva", com uma sonoridade metálica e seca, muito tremida espalhou-se pela rua.
Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de Matemática, veio encostar logo aos caixilhos estreitos da janela a sua vasta face trigueira de quarentona farta e estabelecida; adiante, na sacada aberta de um segundo andar, debruçou-se a figura do Cunha Rosado, magro e chupado, com um boné de borla, o aspeto desconsolado do doente de intestinos, conchegando com as mãos transparentes o robe de chambre ao ventre. Outras faces enfastiadas mostraram-se entre as bambinelas de cassa.
Na rua, a estanqueira chegou-se à porta, vestida de luto, estendendo o seu carão viúvo, os braços cruzados sobre o xale tingido de preto, esguia nas longas saias escoadas. Da loja, por baixo da Casa Azevedo, veio a carvoeira, enorme de gravidez bestial, o cabelo esguedelhado em repas secas, a cara
oleosa e enfarruscada, com três pequenos meio nus, quase negros, chorões e hirsutos, que se lhe penduravam da saia de chita. E Paula, com loja de trastes velhos, adiantou-se até ao meio da rua; a pala de verniz do seu boné de pano preto nunca se erguia de cima dos olhos; escondia sempre as mãos, como para ser mais reservado, por trás das costas, debaixo das abas do seu casaco de cotim branco; o calcanhar sujo da meia saía-lhe para fora da chinela bordada a missanga; e fazia roncar o seu pigarro crónico de um modo despeitado.
Detestava os reis e os padres. O estado das coisas públicas enfurecia-o.
Assobiava frequentemente a Maria da Fonte, e mostrava-se nas suas palavras, nas suas atitudes, um patriota exasperado.