Duas ou três vezes, ao voltar, tinha encontrado Juliana que subia também apressada o Moinho de Vento.
—
De onde vinha você? — perguntara-lhe em casa.
—
Do médico, minha senhora, fui ao médico.
Queixava-se de pontadas, palpitações, faltas de ar.
—
Flatos! Flatos!
Com efeito, Juliana agora fazia todos os arranjos pela manhã; depois apenas Luísa, pela uma hora, dobrava a esquina, ia-se vestir, e muito espartilhada no seu vestido de merino, de chapéu e sombrinha, vinha dizer a Joana:
—
Até logo, vou ao médico.
—
Até logo, Sra. Juliana — dizia a cozinheira radiante.
E ia logo fazer sinal ao carpinteiro.
Juliana descia por São Pedro de Alcântara, e tomando para o Largo do Carmo ia à ruazita, em frente do quartel. Ali morava num terceiro andar a sua íntima amiga, a tia Vitória.
Era uma velha que fora inculcadeira. Ainda tinha mesmo na cancela, numa placa de metal, com letras negras: "VITÓRIA SOARES, INCULCADEIRA".
Mas nos últimos anos a sua indústria tornou-se mais complicada, muito tortuosa.
Exercia-a numa saleta esteirada, com mosquiteiros de papel pendentes do teto encardido, alumiada por duas tristes janelas de peito. Um vasto sofá ocupava quase a parede do fundo; fora decerto de repes verde, mas o estofo coçado, comido, remendado, tinha agora, sob largas nódoas, uma vaga cor parda; as molas partidas, rangiam com estalidos melancólicos; a um dos cantos, numa cova que o uso cavara, dormia todo o dia um gato; e um dos lados da madeira
queimada revelava que fora salvo de um incêndio. Sobre o sofá pendia a litografia do senhor D. Pedro IV. Entre as duas janelas havia uma cómoda alta; e em cima, entre um Santo António e um cofre feito de búzios, um macaquinho empalhado, com olhos de vidro, equilibrava-se sobre um galho de árvore. Ao entrar via-se logo, junto da janela caraira à porta, a uma mesa coberta de oleado, um dorso magro e curvado, e um barretinho de seda com uma borla arrebitada. Era do Sr. Gouveia, o escriturário!
O ar abafado tinha um cheiro complexo, indefinido — em que se sentia a cavalariça, a graxa e o refogado. Havia sempre gente: grossas matronas de capote e lenço, face gordalhufa e buço; cocheiros com o cabelo acamado, muito lustroso de óleo, e blusa de riscadinho; pesados galegos cor de greda, de passadas retumbantes e formas lorpas; criadinhas de dentro, amareladas, de olheiras, sombrinha de cabo de osso, e as luvas de pelica com passagens nas pontas dos dedos.
Decara da sala abria-se um quarto que deitava para o saguão, por cuja portinha verde se viam às vezes desaparecer dorsos respeitáveis de proprietários, ou caudas espalhafatosas de vestidos suspeitos.
Em certas ocasiões, aos sábados, juntavam-se cinco, seis pessoas; velhas falavam baixo, com gestos misteriosos; uma altercação mal abafada roncava no patamar, de repente desatavam a chorar; e, impassível, o Sr. Gouveia
escrevinhava os seus registos, arremessando para o lado jatos melancólicos de saliva.
A tia Vitória, no entanto, com a sua touca de renda negra, um vestido roxo —
ia, vinha, cochichava, gesticulava, fazia tilintar dinheiro, tirando a cada momento da algibeira rebuçados de avenca para o catarro.
A tia Vitória era uma grande utilidade; tornara-se um centro! A criadagem reles, mesmo a criadagem fina, tinha ali para tudo o seu despacho. Emprestava dinheiro aos desempregados; guardava as economias dos poupados; fazia escrever pelo Sr. Gouveia as correspondências amorosas ou domésticas dos que não tinham ido a escola; vendia vestidos em segunda mão; alugava casaca; aconselhava colocações, recebia confidências, dirigia intrigas, entendia de partos. Nenhum criado era inculcado por ela; mas, arranjados ou despedidos, nunca deixavam de subir, descer as escadas da tia Vitória. Tinha além disso muitas relações, infinitas condescendências; celibatários maduros iam entender-se com ela, para o confortozinho de uma sopeira gordita e nova; era ela quem inculcava as serventes às mulheres policiadas; sabia de certos agiotas discretos. E dizia-se: "a tia Vitória tem mais manhas que cabelos!"
Mas, ultimamente, apesar dos seus afazeres, apenas Juliana entrava, levava--a para o quarto nas traseiras, fechava a porta, e havia para meia hora!
E Juliana saia sempre vermelha, os olhos acesos, feliz! Voltava depressa para casa e mal entrava:
—
A senhora ainda não voltou, Sra. Joana?
—
Ainda não.
—
Está na Encarnação. Coitada! Não tem má cruz, ir aturar a velha! E
depois naturalmente vai dar o seu passeio! Faz ela muito bem! Espairecer!
Joana era decerto espessa e obtusa; além disso a paixão animal pelo rapazola emparvecia-a. Todavia, percebera que a Sra. Juliana andava muito derretida pela senhora; disse-lho mesmo um dia:
—
Vossemecê agora, Sra. Juliana, parece mais na bola da senhora!
—
Na bola?