Viu-a afastar para a Patriarcal, e, admirando a graça da sua figura, esfregava as mãos satisfeito.
Estavam justificadas, santificadas mesmo aquelas passeatas todos os dias! Ia ser a enfermeira da pobre D. Felicidade! Era necessário que todos soubessem: o Paula, a estanqueira, a Gertrudes, as Azevedos, todos, de modo que quando a vissem de manhã subir a rua, dissessem: "Lá vai fazer companhia à doente!
Santa senhora".
O Paula estava à porta da loja — e Sebastião com uma ideia súbita, entrou.
Estava-se estimando de se sentir tão fecundo em expedientes, tão hábil!
Deitou um pouco O chapéu para a nuca, e mostrando com o guarda-sol o painel que representava D. João VI:
—
Quanto quer vossemecê por isto, ó Sr. Paula?
O Paula ficou surpreendido:
—
O Sr. Sebastião está a brincar?
Sebastião exclamou:
—
A brincar? — Falava muito sério! Queria uns quadros para a sala de entrada, em Almada; mas velhos, sem caixilho, para dizerem bem sobre um papel escuro. — Como isto! Estou a brincar! Ora essa, homem!
—
Desculpe, Sr. Sebastião. . Pois nesse caso há por aí alguns painéis a calhar.
—
Este D. João VI agrada-me. Quanto custa isto?
O Paula disse, sem hesitar:
—
Sete mil e duzentos. Mas é obra de mestre.
Era uma tela desbotada de tom defumado, onde uns restos de face avermelhada, com uma cabeleira em cachos, sobressaíam vagamente sobre um fundo sombrio. Um vermelhão baço indicava o veludo de uma casaca de corte; a pança saliente e ostentosa enchia um colete esverdeado. E a parte mais conservada da tela era, ao lado sobre um coxim, a coroa real, que o artista trabalhara com uma minuciosidade entusiasta, ou por preocupação de idiota, ou por adulação de cortesão.
Sebastião achava caro; mas o Paula mostrou-lhe o preço escrito por trás, numa tirinha de papel; espanejou a tela com amor; indicou as belezas, falou na sua honestidade; deprimiu outros vendedores de móveis, que tinham a consciência nas palmilhas; jurou que o retrato pertencera ao Paço de Queluz, e ia atacar as questões públicas — quando Sebastião disse resumindo:
—
Bem, pois mande-mo logo, fico com ele. E mande a conta.
—
Leva uma rica obra!
Sebastião agora olhava em redor. Queria falar do pé torcido de D. Felicidade, e procurava uma transição. Examinou umas jarras da Índia, um tremó; e avistando uma poltrona de doente:
—
Aquilo é que era bom para a D. Felicidade! — exclamou logo — aquela cadeira! Boa cadeira!
O Paula arregalou os olhos.
—
Para a D. Felicidade Noronha — repetiu Sebastião. — Para estar deitada. . Pois não sabia, homem? Partiu um pé; tem estado muito mal.
—
A D. Felicidade, a amiga de cá? — e indicou com o polegar a casa do Engenheiro.
—
Sim, homem! Quebrou um pé na Encarnação. Até lá ficou. A D. Luísa vai para lá fazer-lhe companhia todos os dias. Agora ia ela para lá. .
—
Ah! — fez o Paula lentamente. E depois de uma pausa: — Mas eu ainda a vi entrar para cá há de haver oito dias.
—