Foi anteontem. — Tossiu e acrescentou, voltando o rosto, olhando muito umas gravuras: — De resto a D. Luísa já ia todos os dias à Encarnação, mas era para ver a Silveira, a D. Ana Silveira, que esteve mal. Coitada, há três semanas que tem passado uma vida de enfermeira. Não sai da Encarnação! E
agora é a D. Felicidade. Não é má maçada!
—
Pois não sabia, não sabia — murmurava o Paula, com as mãos enterradas nos bolsos.
—
Mande-me o D. João VI, hem?
—
Às ordens, Sr. Sebastião.
Sebastião foi para casa. Subiu à sala; e atirando o chapéu para o sofá: "Bem, pensou, "agora ao menos estão salvas as aparências!" — Passeou algum com a cabeça baixa; sentia-se triste; porque o ter conseguido, por um justificar aqueles passeios para com a vizinhança, fazia-lhe parecer mais cruel a ideia de que os não podia justificar para consigo. Os comentários dos vizinhos iam findar por algum tempo, mas os seus?. . Queria achá-los falsos, pueris, injustos; e, contra sua vontade, o seu bom senso e a sua retidão estavam sempre a revolvê-los baixo. Enfim, tinha feito o que devia! E com um gesto triste, falando só, no silêncio da sala:
—
O resto é com a sua consciência!
Nessa tarde, na rua, sabia-se já que a D. Felicidade Noronha torcera um pé na Encarnação (outros diziam quebrara uma perna), e que a D. Luísa não lhe saia da cabeceira. . O Paula declarara com autoridade:
—
É de boa rapariga, é de muito boa rapariga!
A Gertrudes do doutor foi logo, à noitinha, perguntar à tia Joana, se era verdade da perna quebrada. A tia Joana corrigiu: era o pé, torcera o pé! E a
Gertrudes veio dizer ao doutor, ao chá, que a D. Felicidade dera uma queda, que ficara em pedaços. — Foi na Encarnação — acrescentou. — Diz que anda tudo lá numa roda viva. A Luisinha até lá tem dormido..
—
Pieguices de beatas! — rosnou com tédio o doutor.
Mas na rua todos a elogiavam. Mesmo, daí a dias, o Teixeira Azevedo (que apenas cumprimentava Luísa), tendo-a encontrado na Rua de São Roque, parou, e com uma cortesia profunda:
—
Desculpe Vossência. Como vai a sua doente?
—
Melhor, agradecida.
—
Pois, minha senhora, tem sido de muita caridade, ir todos os dias por calor à Encarnação...
Luísa corou.
—
Coitada! Não lhe falta companhia, mas. .
—
É de muita caridade, minha senhora — exclamou com ênfase. —
Tenho-o dito por toda a parte. É de muita caridade. Um criado de Vossência!
E afastou-se comovido.
Luísa fora logo, com efeito, ver D. Felicidade. Tinha uma luxação simples; nos quartos da Silveira, com o pé em compressas de arnica, cheia de terror de
perder a perna, passava o dia rodeada de amigas, chorando-se, saboreando os mexericos do recolhimento, e debicando petiscos.
Apenas alguém entrava para a ver, redobrava de exclamações e de queixas; vinha logo a história miúda, incidentada, prolixa da desgraça; ia a descer, a pôr o pé no degrau; escorregara; sentiu que ia a cair; ainda se sustentou, e pôde dizer: "Ai, Nossa Senhora da Saúde!" Ao princípio a dor não foi grande; mas podia ter morrido; tinha sido um milagre!
Todas as senhoras concordavam que era realmente um milagre. Olhavam-na compungidas, e iam ao coro alternadamente prostrar-se, e pedir aos santos especiais o alívio da Noronha!
A primeira visita de Luísa foi para D. Felicidade uma consolação; deu-lhe melhoras; porque se ralava de estar ali de cama, sem saber notícias dele, sem poder falar dele!
E nos dias seguintes, apenas ficava só no quarto com Luísa, chamava-a logo para a cabeceira, e num murmúrio misterioso: tinha-o visto? Sabia dele? — A sua aflição era que o Conselheiro não soubesse que ela estava doente, e não lhe pudesse dar aqueles pensamentos compassivos a que o seu pé tinha direito, e que seriam um conforto para o seu coração! Mas Luísa não o vira —
e D. Felicidade, remexendo a chazada, exalava suspiros agudos.
As duas horas Luísa saía da Encarnação e ia tomar um trem ao Rossio: para não parar à porta do Paraíso com espalhafato de tipoia, apeava-se ao Largo de