Não! Fico, que tem? Vá, vá!
E, dai a pouco, sentiu-a bater os tacões no corredor, fechar com ruído a cancela.
Então de repente uma ideia deslumbrou-a, como a fulguração de um relâmpago: — ir ao quarto dela, rebuscar-lhe a arca, roubar-lhe as cartas!
Viu-a da janela dobrar a esquina. Subiu logo ao sótão, devagar, escutando, com o coração aos saltos. A porta do quarto de Juliana estava aberta; vinha de lá um cheiro de mofo, de rato e de roupa enxovalhada que a enjoou; pelo postigo entrava uma luz triste, de tarde escura; e por baixo, encostada à parede, ficava a arca! Mas estava fechada! Decerto! Desceu correndo, veio buscar o seu molho de chaves. . Sentiu uma vergonha — mas se achasse as cartas! Aquela esperança deu-lhe todos os atrevimentos, como um vinho alcoólico. Começou a experimentar as chaves; a mão tremia-lhe; de repente a lingueta, com um estalinho seco, cedeu! Ergueu a tampa, estavam ali talvez! E
então, com cautela, muito femininamente, pôs-se a tirar as coisas uma por uma, pondo-as em cima do colchão: o vestido de merino; um leque com figuras douradas, embrulhado em papel de seda; velhas fitas roxas e azuis, passadas a ferro; uma pregadeira de cetim cor-de-rosa, com um coração bordado a matiz; dois frasquinhos de cheiro, intactos, tendo colados ao vidro raminhos de rosas de papel recortado; três pares de botinas embrulhadas em jornais; a roupa branca, de onde se exalava um cheiro à madeira e de folhas de maçã camoesa. Entre duas camisas estava um maço
de cartas atadas com um nastro... Nenhuma era dela! Nem de Basílio! Eram de letra de aldeia, ininteligível e amarelada! Que raiva! E ficou a olhar para a arca vazia, de pé; com os braços tristemente caídos.
Uma sombra de repente passou diante do postigo. Estremeceu, aterrada. um gato que, com passos leves, vadiava pelo telhado. — disse a repor tudo as
mesmas dobras, fechou a arca, ia a sair — mas lembrou-se de procurar na gaveta da mesa e debaixo do travesseiro. Nada! Impacientou-se então; não se queria ir sem ter gasto toda a esperança; desmanchou a roupa da cama, remexeu a palha amolentada do enxergão, sacudiu as velhas botinas, esgaravatou os cantos. . Nada! Nada!
Subitamente, a campainha tocou. Desceu a correr. Que surpresa! Era D.
Felicidade.
—
És tu! Como estás tu? Entra.
Estava melhor, veio logo contando pelo corredor. Saíra na véspera da Encarnação; o pé às vezes ainda lhe fazia mal; mas graças a Deus estava escapa! E que lhe agradecesse, era a sua primeira visita!
Entraram no quarto. Escurecia. Luísa acendeu as velas.
—
E como me achas tu, hem? — perguntou D. Felicidade, pondo-se diante dela.
—
Um bocadito mais pálida.
Ai! Tinha sofrido muito! Ergueu a saia, mostrou o pé calçado num sapato largo; obrigou Luísa a apalpá-lo. . Que uma consolação lhe restava: é que toda a Lisboa a fora ver! Graças a Deus! Toda a Lisboa; o que há de melhor em Lisboa!
—
E tu esta semana — acrescentou — nem apareceste! Pois olha que te cortaram na pele..
—
Não pude, filha. O Jorge chega amanhã, sabias?
—
Ah, sua brejeira! Viva! Está esse coraçãozinho aos pulos! — E disse-lhe um segredinho.
Riram muito.
—
Pois eu — continuou D. Felicidade sentando-se — arranjei-te hoje a partida. Encontrei esta manhã o Conselheiro, que me disse que vinha.
Encontrei-o aos Mártires! Olha que foi sorte, logo no primeiro dia que saí! E
um bocado adiante dou com Julião; diz que também vinha!. . — E com a voz desfalecida:
—
Sabes? Tomava uma colherinha de doce. .
Foi Luísa que abriu a porta ao Conselheiro e a Julião, que se tinham encontrado na escada, dizendo-lhes a rir:
—
Hoje sou eu o guarda-portão!
D. Felicidade, na sala, para disfarçar a perturbação que lhe deu o espetáculo amado da pessoa de Acácio, começou, falando muito, a censurá-la por deixar assim sair no mesmo dia as duas criadas...
—
E se te achares incomodada, filha; se te der alguma coisa?
Luísa riu. Não era afeta a fanicos...
Todavia achavam-na abatida. E o Conselheiro, com interesse:
—
Tem continuado a sofrer dos dentes, D. Luísa?
Dos dentes? Era a primeira vez que tal ouvia! — exclamou D. Felicidade.
Julião declarou que raras vezes vira uma dentição tão perfeita.
O Conselheiro apressou-se a citar: — Em lábios de coral, pérolas finas..."
E acrescentou:
—
É verdade, mas a última vez que tive a honra de estar com D. Luísa, viu-se tão repentinamente aflita com um dente, que teve de ir a correr chumbá-lo ao Vitry.
Luísa fez-se muito vermelha. Felizmente a campainha tocou. Devia ser a Joana; ia abrir..
—