Ia fulminar a doutrina ultramontana — mas a Sra. Filomena colocou-lhe diante a travessa com a perna de vitela assada. Compenetrou-se logo do seu dever, afiou o trinchador com solenidade, foi cortando fatias finas, com a testa muito franzida como na aplicação de uma função grave. Então Julião,
pousando os cotovelos sobre a mesa e escabichando os dentes com a unha, perguntou:
—
E o ministério, cai ou não cai?
Sebastião ouvira dizer no vapor de Almada, de tarde, que a situação estava firme.
Mas o Saavedra esvaziou o copo, limpou os beiços e declarou que em duas semanas estavam em terra. Nem aquele escândalo podia continuar! Não tinham a mais pequena ideia de governo. Nem a mais leve! Assim, por exemplo, ele. . — E meteu as mãos nos bolsos, firmando-se nas costas da cadeira. — Ele tinha-os apoiado, não é verdade? E com lealdade. Porque era leal! Sempre o fora em política! Pois bem, não lhe tinham despachado o primo recebedor de Aljustrel, tendo-lho prometido! E nem lhe tinham dado uma satisfação. Assim não era possível fazer política! Era uma coleção de idiotas!
Jorge alegrava-se que viessem outros; talvez lhe dessem de novo a sua comissão no ministério; e ele o que queria era estar quieto ao seu cantinho..
O Alves Coutinho calava-se, com prudência, engolindo buchas de pão.
—
Ou que caiam ou que fiquem — disse Julião —, que venham estes ou que venham aqueles. . Obrigado, Conselheiro — e recebeu o seu prato de vitela — . . é-me inteiramente indiferente. É tudo a mesma podridão! — O
país inspirava-lhe nojo; de cima a baixo era uma choldra; e esperava breve que, pela lógica das coisas, uma revolução varresse a porcaria...
—
Uma revolução! — fez o Alves Coutinho assustado, com olhares inquietos para os lados, coçando nervosamente o queixo.
O Conselheiro sentara-se e disse, então:
—
Eu não quero entrar em discussões políticas, só servem para dividir as famílias mais unidas, mas só lhe lembrarei, Sr. Zuzarte, uma coisa, os excessos da Comuna...
Julião recostou-se, e com uma voz muito tranquila:
—
Mas onde está o mal, Sr. Conselheiro, se fuzilarmos alguns banqueiros, alguns padres, alguns proprietários obesos e alguns marqueses caquéticos! Era uma limpezazinha!. . — E fazia o gesto de afiar a faca.
O Conselheiro sorriu, cortesmente; tomava como um gracejo aquela saída sanguinária.
O Saavedra, porém, interpôs-se, com autoridade:
—
Eu no fundo sou republicano...
—
E eu — disse Jorge.
—
E eu — fez o Alves Coutinho, já inquieto. — Contem-me a mim também!
—
Mas — continuou o Saavedra — sou-o em princípio. Porque o princípio é belo, o princípio é ideal! Mas a prática? Sim, a prática? — E
voltava para todos os lados a sua face balofa.
—
Sim, na prática! — exclamava o Alves Coutinho, em eco admirativo.
—
A prática é impossível! — declarou o Saavedra. E encheu a boca de vitela.
O Conselheiro então resumiu:
—
A verdade é esta: o pais está sinceramente abraçado à família real. . Não acha, meu bom Sebastião? — Dirigia-se a ele como proprietário e possuidor de inscrições.
Sebastião, interpelado, corou, declarou que não entendia nada de política; havia todavia factos que o afligiam; parecia-lhe que os operários eram mal pagos; a miséria crescia; os cigarreiros, por exemplo, tinham apenas de nove a onze vinténs por dia, e, com família, era triste..
—
É uma infâmia! — disse Julião encolhendo os ombros.
—
E há poucas escolas. . — observou timidamente Sebastião.
—
É uma torpeza! — insistiu Julião.
O Saavedra calava-se, ocupado com o alimento; tinha desabotoado a fivela do colete; espalhava-se-lhe no rosto gordo uma cor de enfartação, e sorria vagamente, inchado.
—
E os idiotas de São Bento?. . — exclamou Julião.
Mas o Conselheiro interrompeu-o:
—
Meus bons amigos, falemos de outra coisa. É mais digno de portugueses e de súbditos fiéis.