É verdade, onde ias tu a Arroios?
Luísa passou devagar as mãos sobre o rosto para lhe cobrir a alteração. Disse, bocejando ligeiramente:
—
A Arroios?
—
Sim. O Saavedra, um sujeito que estava em casa do Conselheiro, diz que te via passar todos os dias para lá, de trem e a pé.
—
Ah! — fez Luísa depois de tossir — ia ver a Guedes, uma rapariga que andou comigo no colégio, que tinha chegado do Porto. A Silva Guedes!
—
Silva Guedes!. . — disse Jorge refletindo. — Imaginei que estava secretário-geral em Cabo Verde!
—
Não sei. Estiveram aí um mês no verão. Moravam a Arroios. Ela estava doente coitada: eu ia lá às vezes. Mandava-me pedir para ir lá. Põe essa luz fora, está-me a fazer impressão.
Queixou-se então que toda a tarde estivera esquisita. Sentia-se fraca, e com uma pontinha de febre..
E nos dias seguintes não se achou melhor. Queixava-se ainda vagamente de peso na cabeça, mal-estar. . Uma manhã mesmo ficou de cama. Jorge não saiu, inquieto, querendo já mandar chamar Julião. Mas Luísa insistiu que não era nada, um bocadito de fraqueza talvez. . Foi também a opinião de Juliana, em cima na cozinha.
—
Que aquela senhora é fraca; ali há coisa do peito — disse com importância.
Joana que estava debruçada sobre o fogão, acudiu logo:
—
O que ela é, é uma santa!...
Juliana cravou-lhe nas costas um olhar rancoroso. E com um risinho:
—
A Sra. Joana diz isso como se as outras fossem uma peste.
—
Que outras?
—
Eu, vossemecê, a mais gente..
Joana sempre remexendo nas panelas sem se voltar:
—
Olhe, outra não encontra vossemecê, Sra. Juliana! Uma senhora que lhe fazer tudo o que quer, e faz ela mesma o serviço! Noutro dia andava a despejar as águas. E uma santa!
Aquele tom hostil de Joana exasperou-a; mas conteve-se; apesar da sua posição na casa, dependia dela para os caldinhos, os bifes, os petiscos; tinha diante dela a vaga timidez respeitosa das constituições franzinas pelos corpos possantes; pôs-se a dizer com uma voz tortuosa, ambígua:
—
Ora! São génios! Gosta de arrumar. Ah, lá isso deve-se dizer, é senhora de muita ordem. Mas gosta, gosta de trabalhar. Às vezes basta-lhe ver um bocadinho de pó, agarra logo no espanador. . É génio. Tenho visto outras assim.. E punha a cabeça de lado franzindo os beiços.
—
O que ela é, é uma santa — repetiu Joana.
—
É génio! Está sempre numa labutação. Eu nunca saio sem deixar tudo brinco. Pois senhores, nunca está satisfeita. Até noutro dia, lá embaixo a passar a roupa. . Eu ia a sair, pois tirei logo o chapéu, e não consenti. . Olhe, quer diga? Falta de cuidados, não ter filhos. . Que ela não lhe falta nada...
Calou-se, remirou o pé, e com satisfação:
—
Nem a mim — disse reclinando-se na cadeira. Joana pôs-se a cantarolar. Não queria questões. Mas ultimamente achava tudo aquilo muito fora dos eixos, a Juliana sempre na rua, ou metida no quarto a trabalhar para si, sem se importar, deixando tudo ao deus-dará, e a pobre senhora a varrer, a passar, a emagrecer! Não, ali havia coisa! Mas o seu Pedro que ela consultara, disse-lhe com finura, retorcendo o buço: — Elas lá se entendem! Trata tu de gozar, e não te importes com a vida dos outros. A casa é boa, toca a tirar partido!
Mas Joana sentia "lá por dentro" a crescer-lhe uma embirração pela Sra.
Juliana. Tinha-lhe asca pelas tafularias, pelos luxos do quarto, pelas passeatas todo o dia, pelos modos de madama; não se recusava a fazer-lhe o serviço, porque isso lhe rendia presentinhos da senhora; mas quê, tinha-lhe birra! O
que a consolava era a ideia de que um piparote desfazia aquela magricela! E ia tirando partido da casa também. O Pedro tinha razão. .
Juliana com efeito, agora, não se constrangia. Depois da cena da roupa assustara-se, porque, enfim, o escândalo podia-lhe fazer perder a posição; durante alguns dias não saiu, foi cuidadosa; mas quando viu Luísa resignar-se, abandonou-se logo, quase com fervor, às satisfações da preguiça e às alegriazinhas da vizinhança. Passeava, costurava fechada no seu quarto, e a Piorrinha que se arranjasse! Diante de Jorge ainda se continha: temia-o. Mas apenas ele saía! Que desforra! Às vezes estava varrendo ou arrumando — e,
mal o sentia fechar a cancela, atirava o ferro, a vassoura, punha-se a panriar.
Lá estava a Piorrinha, para acabar!
Luísa, no entanto, passava pior: tinha de repente, sem razão, febres efémeras; emagrecia, e as suas melancolias torturavam Jorge.
Ela explicava tudo pelo nervoso.
—
Que será, Sebastião? — era a pergunta incessante de Jorge. E lembrava-se com terror que a mãe de Luísa morrera de uma doença de coração!
Na rua, pela cozinheira, pela tia Joana, sabia-se que a do Engenheiro ia mal. A tia Joana jurava que era a solitária. Porque enfim, uma pessoa a quem não faltava nada, com um marido que era um anjo, uma boa casa, todos os seus cómodos — e a esmorecer, a esmorecer.. Era a bicha! Não podia ser senão a bicha! E todos os dias lembrava a Sebastião que se devia mandar chamar o homem de Vila Nova de Famalicão, que tinha o remédio para a bicha.