Queria pedir ao primo da senhora que me ajudasse! Estou cansada de trabalhar, e quero o meu descanso. Não ia fazer escândalo; o que desejava é que ele me ajudasse. . Mandei ao hotel esta tarde.. O primo da senhora tinha desarvorado! Tinha ido para o lado dos Olivais, para o inferno! E o criado ia à noite com as malas. Mas a senhora pensa que me logram? — E retomada pela sua cólera, batendo com o punho furiosamente na mesa: — Raios me partam, se não houver uma desgraça nesta casa, que há de ser falada em Portugal!
—
Quanto quer você pelas cartas, sua ladra? — disse Luísa, erguendo-se .
direita, diante dela.
Juliana ficou um momento interdita.
—
A senhora ou me dá seiscentos mil réis, ou eu não largo os papéis! —
respondeu, empertigando-se.
—
Seiscentos mil réis! Onde quer você que eu vá buscar seiscentos mil réis?
—
Ao inferno! — gritou Juliana. — Ou me dá seiscentos mil réis, ou tão certo como eu estar aqui, o seu marido há de ler as cartas!
Luísa deixou-se cair numa cadeira, aniquilada.
—
Que fiz eu para isto, meu Deus? Que fiz para isto?
Juliana plantou-se-lhe diante, muito insolente.
—
A senhora diz bem, sou uma ladra, é verdade; apanhei a carta no cisco; tirei as outras do gavetão. É verdade! E foi para isto, para mas pagarem! — E
traçando, destraçando o xale, numa excitação frenética: — Não que a minha vez havia de chegar! Tenho sofrido muito, estou farta! Vá buscar o dinheiro onde quiser. Nem cinco réis de menos! Tenho passado anos e anos a ralar-me!
Para ganhar meia moeda por mês, estafo-me a trabalhar, de madrugada até à noite, enquanto a senhora está de pânria! É que eu levanto-me às seis horas da manhã — e é logo engraxar, varrer, arrumar, labutar, e a senhora está muito regalada em vale de lençóis, sem cuidados, nem canseiras. Há um mês que me ergo com o dia, para meter em goma, passar, engomar! A senhora suja, suja, quer ir ver quem lhe parece, aparecer-lhe com tafularias por baixo e cá está a
negra, com a pontada no coração, a matar-se com o ferro na mão! E a senhora, são passeios, tipoias, boas sedas, tudo o que lhe apetece — e a negra?
A negra a esfalfar-se!
Luísa, quebrada, sem força de responder, encolhia-se sob aquela cólera como um pássaro sob um chuveiro. Juliana ia-se exaltando com a mesma violência da sua voz. E as lembranças das fadigas, das humilhações, vinham atear-lhe a raiva, como achas numa fogueira.
—
Pois que lhe parece? — exclamava. Não que eu coma os restos e a senhora os bons bocados! Depois de trabalhar todo o dia, se quero uma gota de vinho, quem mo dá? Tenho de o comprar! A senhora já foi ao meu quarto?
E uma enxovia! A percevejada é tanta que tenho de dormir quase vestida! E a senhora se sente uma mordedura, tem a negra de desaparafusar a cama, e de a catar frincha por frincha. Uma criada! A criada é o animal. Trabalha se pode, senão rua, para o hospital. Mas chegou-me a minha vez — e dava palmadas no peito, fulgurante de vingança. — Quem manda agora, sou eu!
Luísa soluçava baixo.
—
A senhora chora! Também eu tenho chorado muita lágrima! Ai! Eu não lhe quero mal, minha senhora, certamente que não! Que se divirta, que goze, que goze! O que eu quero é o meu dinheiro. O que eu quero é o meu dinheiro aqui escarrado, ou o papel há de ser falado! Ainda este teto me rache, se eu
não for mostrar a carta ao seu homem, aos seus amigos, à vizinhança toda, que há de andar arrastada pelas ruas da amargura!
Calou-se, exausta; e com a voz entrecortada de cansaços:
—
Mas dê-me a senhora o meu dinheiro, o meu rico dinheiro, e aqui tem os papéis; e o que lá vai, lá vai, e até lhe levo outras. Mas o meu dinheiro para aqui! E também lhe digo, que morta seja eu neste instante com um raio, se depois de eu receber o meu dinheiro esta boca se torna a abrir! — E deu uma palmada na boca.
Luísa erguera-se devagar, muito branca:
—
Pois bem — disse, quase num murmúrio — eu lhe arranjarei o dinheiro. Espere uns dias.
Fez-se um silêncio — que depois do ruído parecia muito profundo; e tudo no quarto como que se tornara mais imóvel. Apenas o relógio batia o seu tique-taque, e duas velas sobre o toucador consumindo-se davam uma luz avermelhada, e direita.
Juliana tomou a sombrinha, traçou o xale, e depois de fitar Luísa um momento:
—
Bem, minha senhora — disse, muito seca.