O Paula explicava de outro modo:
—
Ali anda coisa de cabeça — dizia, franzindo a testa, com o ar profundo.
—
Sabe o que ela tem, Sra. Helena? É muita dose de novelas naquela cachimónia. Eu vejo-a de pela manhã até à noite de livro na mão. Põe-se a ler romances e mais romances... Aí têm o resultado: arrasada!
Um dia Luísa de repente, sem razão, desmaiou; e quando voltou a si ficou muito fraca, com o pulso sumido, os olhos cavados. Jorge foi logo buscar
Julião; encontrou-o muito agitado, porque o concurso era para o dia seguinte, e sentia cólicas.
Durante todo o caminho não deixou de falar excitadamente da sua tese, do escândalo dos patrocinatos, do barulho que faria se fossem injustos —
arrependido agora de não ter metido mais cunhas!
Depois de ter examinado Luísa veio dizer, furioso, a Jorge:
—
Não tem nada! E vais-me buscar para isto! Tem anemia, o que todos temos. Que passeie, que se distraia. Distrações e ferro, muito ferro. . E água fria, fria pra cima daquela espinha!
Como eram cinco horas convidou-se para jantar, deblaterando toda a tarde contra o país, amaldiçoando a carreira médica, injuriando o seu concorrente e fumando com desespero os charutos de Jorge.
Luísa tomava o ferro, mas recusava as distrações; fatigava-a vestir-se, aborrecia-lhe ir ao teatro. . Depois, logo que viu Jorge preocupar-se do seu estado, quis
afetar força, alegria, bom humor; e aquele esforço abatia-a, extraordinariamente.
—
Vamos para o campo, queres tu? — dizia-lhe Jorge desolado vendo-a esmorecida.
Ela, receando complicações possíveis, não aceitava; não se sentia bastante forte, dizia: onde estava mais confortável que em casa? Depois as despesas, os incómodos.
Uma manhã, que Jorge voltara a casa inesperadamente, encontrou-a em de chambre, com um lenço amarrado na cabeça, varrendo lugubremente. Ficou à porta, atónito:
—
Que andas tu a fazer? Andas a varrer? Ela corou muito, atirou logo a vassoura, veio abraçá-lo.
—
Não tinha que fazer.. Deu-me a mania da limpeza. . Estava aborrecida,
~ disso faz-me bem, é um exercício.
Jorge, à noite, contou a Sebastião aquela "tolice de se andar a esfalfar.. "
—
Uma pessoa que está tão fraca, minha senhora. . — observou repreensivamente Sebastião.
—
Mas não!" dizia ela, achava-se bem melhor! Até agora andava muito melhor. .
Todavia, quase não falou nessa noite, curvada sobre o seu croché, um pouco pálida: e os seus olhos às vezes erguiam-se com uma fadiga triste, sorrindo silenciosamente, de um modo desconsolado.
Pediu a Sebastião que tocasse alguma coisa do Réquiem de Mozart. Achava tão lindo! Gostava que lho cantassem na igreja quando ela morresse. .
Jorge zangou-se. Que mania de falar em coisas ridículas!
—
Mas então, não é possível que eu morra?...
Pois bem, morre e deixa-nos em paz! — exclamou ele furioso.
—
Que bom marido! — dizia ela sorrindo a Sebastião. Deixou cair o Croché no regaço, pediu-lhe então os dezasseis compassos da Africana.
Escutava, com a cabeça apoiada à mão; aqueles sons entravam-lhe na alma com a doçura de vozes místicas que a chamavam; parecia-lhe que ia levada por elas, se rendia de tudo o que era terrestre e agitado, se achava numa praia deserta, junto ao mar triste, sob um frio luar — e ali, puro espírito, livre das misérias carnais, rolava nas ondulações do ar, tremia nos raios luminosos, passava sobre os urzes nos sopros salgados. .
A melancólica atitude do seu corpo abatido enfureceu Jorge:
—
Ó Sebastião, fazes-me favor de tocar o fandango, o Barba-Azul, o Pirolito, o diabo? Senão, se querem melancolia, eu começo com o cantochão!
E cantou, com um tom fúnebre:
Dies irae, dies illae,
Solvunt saecula in favilia!.
Luísa riu-se:
—
Que doido! Nem pode a gente estar triste. .
—
Pode! — exclamou Jorge. — Mas então venha a bela tristeza, venha a tristeza completa. — E com uma voz medonha entoou o Bendito!
—