E ele, o homem, tomaria o paquete! Não teria de corar diante dele e o seu segredo ia para o estrangeiro, tão perdido como se fosse para o túmulo! — E, além disso, se o Castro tinha uma paixão por ela, era bem possível que lhe emprestasse, sem condições!...
Bom Deus! No dia seguinte podia ter ali na algibeira do seu roupão as notas, o ouro. . porque não? — porque não? E vinha-lhe um desejo ansioso de se libertar, de viver feliz, sem agonias, sem martírios...
Voltou ao quarto. Pôs-se a remexer no toucador, olhando de lado Jorge que se vestia. . A presença dele deu-lhe logo um remorso; ir pedir a um homem dinheiro, consentir nos seus olhares lascivos, nas suas palavras intencionais!...
Que horror! — Mas já subtilizava. Era por Jorge, era por ele! Era para lhe poupar o desgosto de saber! Era para o poder amar livremente, toda a vida, sem receios, sem reservas. .
Durante todo o almoço esteve calada. O rosto simpático de Jorge enternetecia-a: o outro parecia-lhe medonho, odiava-o já!..
Quando Jorge saiu ficou muito nervosa. Ia à janela; o sol parecia-lhe adorável, a rua atraía-a. — porque não? porque não?
A voz de Juliana, muito áspera, falou então nas escadas da cozinha; e aquele cantado odioso decidiu-a bruscamente.
Vestiu-se com cuidado: era mulher, quis parecer bonita. — E chegou toda esbaforida à casa de Leopoldina, quando dava meio-dia a São Roque.
Encontrou-a vestida, esperando o almoço. E tirando imediatamente o chapéu, instalando-se no sofá, explicou muito claramente a Leopoldina a sua resolução. Queria o dinheiro do Castro. Emprestado ou dado, queria o dinheiro!. . Estava numa aflição, devia valer-se de tudo!... Jorge queria despedir a mulher.. Tinha medo de uma vingança dela. . Queria dinheiro, ali estava!
—
Mas assim de repente, filha! — disse Leopoldina, pasmada do seu olhar decidido.
—
O Castro vai-se amanhã. Vai para Bordéus, para o inferno! É necessário fazer alguma coisa, já!
Leopoldina lembrou escrever-lhe.
—
O que quiseres. . Eu aqui estou!
A outra sentou-se devagar à mesa, escolheu uma folha de papel e, com o dedinho no ar, a cabeça de lado, começou a escrivinhar.
Luísa passeava pelo quarto, nervosa. Tinha agora uma resolução teimosa, que a presença de Leopoldina fortificava! Divertia-se aquela, dançava, ia ao campo, gozava, vivia, sem ter como ela uma tortura a minar-lhe, a estragar-lhe a vida!
Ah! Não voltaria para casa sem levar na algibeira em boas libras o resgate, a salvação! Ainda que tivesse de ser vil como as do Bairro Alto! Estava farta das humilhações, dos sustos, das noites cortadas de pesadelos!. . Queria saborear a vida, que diabo! O seu amor, o seu jantar, sem cuidados, com o coração contente!
—
Vê lá — disse Leopoldina, lendo:
Meu Caro Amigo.
Desejo absolutamente falar-lhe. É um negócio grave. Venha logo que possa. Talvez meagradeça. Espero até às três horas, o mais tardar.
Com toda a estima,
Sua amiga
Leopoldina.
—
Que te parece?
—
Horrível! Mas está bem.. Está muito bem! Risca-lhe o "talvez me agradeça". É melhor.
Leopoldina copiou o bilhete, mandou-o pela Justina, num trem.
—
E agora vou almoçar, que me não tenho nas pernas.
A sala de jantar dava para um saguão estreito. As paredes estavam cobertas de uma pintura medonha, em que grandes manchas verdes semelhavam colinas, e linhas azul-ferretes representavam lagos. Um armário, no ângulo da parede, servia de guarda-louça. As cadeiras de palhinha tinham almofadinhas de paninho vermelho; e na toalha havia nódoas do café da véspera.
—
De uma coisa podes tu ter a certeza — dizia Leopoldina, bebendo grandes goles de chá —, é que o Castro é um homem para um segredo!. . Se te emprestar o dinheiro, que empresta, daquela boca não sai uma palavra. Lá nisso é perfeito. . Olha que foi o amante da Videira anos! E nem ao
Mendonça, que é o seu íntimo, disse uma palavra. Nem uma alusão! E um poço.
—
Que Videira? — perguntou Luísa.
—
Uma alta, de nariz grande, que tem um landó.
—
Mas passa por uma mulher tão séria. .
—
Já tu vês! — E com um risinho: — Ai elas passam, passam. Lá passar.
passam. A questão é conhecer-lhes os podres, minha fidalga!
E barrando de manteiga grandes fatias de pão, pôs-se a falar complacentemente dos escândalos de Lisboa, a desdobrar o sudário: citava nomes, especialidades, as que depois de terem feito o diabo gastam, numa devoção tardia, o resto de uma velha sensibilidade; que é por onde elas acabam, algumas é pelas sacristias! As que, cansadas decerto de uma virtude monótona, preparam habilmente o seu "fracasso" numa estação em Sintra ou em Cascais. E as meninas solteiras! Muito pequerrucho, por essas amas dos arredores, tem o direito de lhes chamar "mamã"! Outras mais prudentes, receando os resultados do amor, refugiam-se nas precauções da libertinagem. .
Sem contar as senhoras que, em vista dos pequenos ordenados, completam o marido com um sujeito suplementar! — Exagerava muito; mas odiava-as tanto! Porque todas tinham, mais ou menos, sabido conservar a exterioridade decente que ela perdera, e manobravam com habilidade onde ela, a tola, tivera
só a sinceridade! E enquanto elas conservavam as suas relações, convites para soirées, a estima da corte — ela perdera tudo, era apenas a Quebrais!. .
Aquela conversa enervava Luísa; numa tal generalidade do vício parecia-lhe que o seu caso, como um edifício num nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visível quase o julgava já justificado.