Luísa já gritava por ela do quarto, já a mandava a recados fora; Juliana chegava a ter às vezes migalhas de conversa: — Está um calor de morrer.. A lavadeira tarda. . — Um dia arriscou esta frase mais intima: — Encontrei a criada da senhora D. Leopoldina.
Luísa perguntou:
—
Ainda está para o Porto?
—
Ainda se demora um mês, minha senhora. .
De resto havia na casa um aspeto muito tranquilo, e Luísa, depois de tantas agitações, abandonava-se com gozo à satisfação daquele descanso. Ia às vezes ver D. Felicidade à Encarnação, que já se levantava. E esperava sempre Sebastião, mas sem impaciência, quase contente por ver adiado o momento terrível de lhe dizer: "Escrevi a um homem, Sebastião!"
Assim iam passando os dias; estava-se no fim de Setembro.
Uma tarde Luísa ficara mais tempo à janela da sala de jantar; deixara cair o livro no regaço, e olhava, sorrindo, um bando de pombas que de algum quintal vizinho viera pousar sobre o tabique de terreno vago. Pensava vagamente em Basílio, no Paraíso. . Sentiu passos; era Juliana.
—
Que é?
A mulher cerrara a porta, e vindo junto dela, baixo:
—
Então a senhora ainda não decidiu nada?
Luísa sentiu como uma pancada no estômago.
—
Ainda não pude arranjar nada. .
Juliana esteve um momento a olhar para o chão:
—
Bem — murmurou, por fim.
E Luísa ouviu-a, no corredor, dizer alto:
—
Isto quando o senhor voltar é que são os ajustes de contas!
Quando Jorge voltasse! Imediatamente no seu espírito, que se tinha pouco a pouco serenado, todos os sustos, as angústias estremeceram de novo àquela ameaça — assim uma rajada súbita põe em convulsão um árvoredo. Devia, pois, fazer alguma coisa antes que ele chegasse! Justamente Jorge escrevera-lhe, que não se demoraria, que a avisaria pelo telégrafo... Desejava, agora, que do ministério o mandassem fazer uma viagem mais longe, pela Espanha ou pela África; que alguma catástrofe, sem lhe fazer mal, o retardasse meses!...
Que faria ele, se soubesse? Matá-la-ia? Lembravam-lhe as suas palavras muito sérias, naquela noite, quando Ernestinho contara o final do seu drama... Metê-la-ia numa carruagem, levá-la-ia a um convento? E via a grossa portaria fechar-se com um ruído funerário de ferrolhos, olhos lúgubres estudá-la curiosamente. .
O seu terror irraciocinado fizera-lhe mesmo perder a ideia nítida do seu marido; imaginava um outro Jorge sanguinário e vingativo, esquecendo o seu caráter bom, tão pouco melodramático. Um dia foi ao escritório, tomou a caixa das pistolas, fechou-a num baú de roupa velha, e escondeu a chave!. .
Uma ideia amparava-a: era que apenas Sebastião viesse de Almada, estava salva; e apesar daquela agonia miúda de todos os momentos, quase receava saber que ele tivesse chegado — tanto a confissão da verdade lhe parecia uma agonia maior! Foi por esse tempo, então, que lhe veio uma lembrança —
escrever a Basílio. O terror permanente amolecera-lhe o orgulho, como a lenta
infiltração da água faz a uma parede; e todos os dias começou a achar uma razão, mais uma, para se dirigir "àquele infame": fora seu amante, já sabia todo o caso das cartas, era o seu único parente. . E não teria de "dizer" a Sebastião!
Já às vezes pensara que não aceitar dinheiro de Basílio fora uma "fanfarronada bem tola!" Um dia enfim escreveu-lhe. Era uma carta longa, um pouco confusa, pedia-lhe seiscentos mil réis. Foi ela mesmo levá-la ao correio, sobrecarregando-a de estampilhas.
Nessa tarde, por acaso, Sebastião, que chegara de Almada, veio vê-la.
Recebeu-o com alegria, feliz por não ter de lhe contar..
Falou da volta de Jorge; aludiu mesmo ao primo Basílio, à pouca vergonha da vizinhança. .
—
Não — disse — é a primeira coisa que hei de contar ao Jorge.
Porque se considerava salva, agora! E todos os dias seguia a carta, no seu caminho para França, como se a sua mesma vida fosse dentro daquele sobrescrito entregue ao acaso dos trens e à confusão das viagens! Chegara a Madrid, depois a Barcelona, depois a Paris! Um carteiro corria a entregá-la na Rue Saint Florentin. Basílio abria-a tremendo, enchia um sobrescrito de notas, muitas, que cobria de beijos, e o envelope, trazendo a sua salvação e o seu descanso, começava a rolar para baixo, pela França e pela Navarra, soprando como um monstro e apressando-se como um próprio.
No dia em que a resposta devia chegar, levantou-se mais cedo, agitada, com o ouvido pregado na porta, esperando o toque do carteiro. Via-se já a expulsar Juliana, a soluçar de alegria!.. Mas às dez e meia começou a estar nervosa; às onze chamou Joana, que fosse saber se o carteiro passara.
—
Diz que sim, minha senhora, que lá passou.
—