—
Juliana! — fez Luísa, com a voz alterada.
A outra voltou-se, surpreendida.
E Luísa batendo com as mãos, num movimento suplicante:
—
Mas você ao menos nestes primeiros dias.. Eu hei de arranjar, esteja cena!. .
Juliana acudiu logo:
—
Oh, minha senhora! Eu não quero dar desgostos a ninguém. O que eu quero é um bocadinho de pão para a velhice. da minha boca não há de vir mal
a ninguém. O que peço à senhora é que se for da sua vontade e me quiser ir ajudando...
—
Lá isso, sim. . O que você quiser.
—
Pois pode, estar certa que esta boca. . — E fechou os lábios com os dedos.
Que alegria para Luísa! Tinha uns dias, umas semanas, enfim, sem tormentos, com o seu Jorge! Abandonou-se então toda à deliciosa impaciência de o ver.
Era singular — mas parecia-lhe que o amava mais!... — E depois pensaria, veria, daria outros presentes a Juliana, poderia pouco a pouco preparar Sebastião. . Quase se sentia feliz.
De tarde Juliana veio dizer-lhe, muito risonha:
—
A Sra. Joana saiu, que era hoje o seu dia, mas eu tinha tanta precisão de sair, também! Se a senhora lhe não custasse ficar só. .
—
Não! Fico, que tem? Vá, vá!
E, dai a pouco, sentiu-a bater os tacões no corredor, fechar com ruído a cancela.
Então de repente uma ideia deslumbrou-a, como a fulguração de um relâmpago: — ir ao quarto dela, rebuscar-lhe a arca, roubar-lhe as cartas!
Viu-a da janela dobrar a esquina. Subiu logo ao sótão, devagar, escutando, com o coração aos saltos. A porta do quarto de Juliana estava aberta; vinha de lá um cheiro de mofo, de rato e de roupa enxovalhada que a enjoou; pelo postigo entrava uma luz triste, de tarde escura; e por baixo, encostada à parede, ficava a arca! Mas estava fechada! Decerto! Desceu correndo, veio buscar o seu molho de chaves. . Sentiu uma vergonha — mas se achasse as cartas! Aquela esperança deu-lhe todos os atrevimentos, como um vinho alcoólico. Começou a experimentar as chaves; a mão tremia-lhe; de repente a lingueta, com um estalinho seco, cedeu! Ergueu a tampa, estavam ali talvez! E
então, com cautela, muito femininamente, pôs-se a tirar as coisas uma por uma, pondo-as em cima do colchão: o vestido de merino; um leque com figuras douradas, embrulhado em papel de seda; velhas fitas roxas e azuis, passadas a ferro; uma pregadeira de cetim cor-de-rosa, com um coração bordado a matiz; dois frasquinhos de cheiro, intactos, tendo colados ao vidro raminhos de rosas de papel recortado; três pares de botinas embrulhadas em jornais; a roupa branca, de onde se exalava um cheiro à madeira e de folhas de maçã camoesa. Entre duas camisas estava um maço
de cartas atadas com um nastro... Nenhuma era dela! Nem de Basílio! Eram de letra de aldeia, ininteligível e amarelada! Que raiva! E ficou a olhar para a arca vazia, de pé; com os braços tristemente caídos.
Uma sombra de repente passou diante do postigo. Estremeceu, aterrada. um gato que, com passos leves, vadiava pelo telhado. — disse a repor tudo as
mesmas dobras, fechou a arca, ia a sair — mas lembrou-se de procurar na gaveta da mesa e debaixo do travesseiro. Nada! Impacientou-se então; não se queria ir sem ter gasto toda a esperança; desmanchou a roupa da cama, remexeu a palha amolentada do enxergão, sacudiu as velhas botinas, esgaravatou os cantos. . Nada! Nada!
Subitamente, a campainha tocou. Desceu a correr. Que surpresa! Era D.
Felicidade.
—
És tu! Como estás tu? Entra.
Estava melhor, veio logo contando pelo corredor. Saíra na véspera da Encarnação; o pé às vezes ainda lhe fazia mal; mas graças a Deus estava escapa! E que lhe agradecesse, era a sua primeira visita!
Entraram no quarto. Escurecia. Luísa acendeu as velas.
—
E como me achas tu, hem? — perguntou D. Felicidade, pondo-se diante dela.
—
Um bocadito mais pálida.
Ai! Tinha sofrido muito! Ergueu a saia, mostrou o pé calçado num sapato largo; obrigou Luísa a apalpá-lo. . Que uma consolação lhe restava: é que toda a Lisboa a fora ver! Graças a Deus! Toda a Lisboa; o que há de melhor em Lisboa!
—