Para que dizes então que tenho medo dela? — E as lágrimas recomeçavam. — Medo de quê? porque hei de eu ter medo dela? Que despropósito!
—
Pois bem, não digo. Não se fala mais na criatura. Mas não chores.. Vá, acabou-se — Beijou-a. E tomando-a pela cinta, levando-a docemente: — Vá, o ferro agora. Vem! Que criança que tu és!
Por bondade, por consideração com os nervos de Luísa, Jorge durante alguns dias não falou na criatura. Mas pensava nela; e aquele estafermo, com os pés para a cova, na sua casa, exasperava-o. Depois as madracices que lhe percebera, os confortos do quarto que vira na noite em que ela desmaiara, aquela bondade ridícula de Luísa!. . Achava aquilo estranho, irritante!. . Como estava fora de casa todo o dia, e diante dele Juliana só tinha sorrisos para Luísa, muitas atitudes de afeto, imaginava que ela se soubera insinuar e, pelas pequenas intimidades de ama a criada, se tomara necessária e estimada. Isso aumentava a sua antipatia. E não a disfarçava.
Luísa vendo-o às vezes seguir Juliana com um olhar rancoroso, tremia! Mas o que a torturava era a maneira que Jorge adotara de falar dela com uma veneração irónica; chamava-lhe "a ilustre D. Juliana, a minha ama e senhora!"
Se faltava um guardanapo ou um copo, fingia-se espantado: "Como! a D.
Juliana esqueceu-se! Uma pessoa tão perfeita!" Tinha gracejos que gelavam Luísa.
—
A que sabia o filtro que ela te deu? Era bom?
Luísa agora, diante dele, já nem se atrevia a falar a Juliana com um modo natural; temia os sorrisos malignos, os apartes: "Anda, atira-lhe um beijo, conhece-se na cara que estás com vontade de lho atirar!" E, receando as suspeitas dele, querendo mostrar-se independente, começou na sua presença, a falar a Juliana com uma dureza brusca, muito afetada. A pedir-lhe água, uma faca, dava à voz inflexões de um rancor postiço.
Juliana, muito fina, tinha percebido tudo, e suportava calada. Queria evitar toda a questão que a perturbasse no seu conchego. Sentia-se agora muito mal, e nas noites em que não podia dormir com aflições asmáticas, punha-se a pensar com terror — se fosse expulsa daquela casa, para onde iria? Para o hospital!
Tinha por isso medo de Jorge.
—
Ele está morto por me pilhar em desleixo grosso, e descartar-se de mim
— dizia ela à tia Vitória —, mas não lhe hei de dar esse gosto, ao boi manso!
E Luísa, pasmada, vira-a pouco a pouco recomeçar a fazer todo o serviço, com zelo, aparentemente; e todavia às vezes não podia, vencida pela doença; tinha flatos que a faziam cair numa cadeira, arquejando, com as mãos no
coração. Mas reagia. Uma ocasião mesmo vendo Luísa a passar um espanejador pelas consolas da sala, zangou-se:
—
A senhora faz favor de se não meter no meu serviço? Eu ainda posso!
Ainda não estou na cova!
Consolava-se então com regalos de gulodice. Durante todo o dia debicava sopinhas, croquetes, pudinzinhos de batata. Tinha no quarto gelatina e vinho do Porto. Em certos dias mesmo queria caldos de galinha à noite.
—
Com o meu corpo o pago — dizia ela a Joana —, que trabalho como uma negra! Arraso-me!
Um dia, porém, que Jorge se irritara mais com a figura amarelada de Juliana, e que estava nervoso, ao achar à noite o jarro vazio e o lavatório sem toalha, enfureceu-se desproporcionadamente.
—
Não estou para aturar estes desleixos! Irra! — gritou.
Luísa veio logo, inquieta, desculpar Juliana.
Jorge mordeu o beiço, curvou-se profundamente e com a voz um pouco trémula:
—
Perdão! Esquecia-me que a pessoa de Juliana é sagrada! Eu mesmo vou buscar água!
Luísa então zangou-se: se havia de estar sempre com aqueles remoques, era mandar a criada embora por uma vez! Imaginava talvez que ela amava de paixão Juliana? Se a conservava é porque era uma boa criada. Mas se ela se tornava a causa de maus humores, de questões, se ele lhe ganhara tamanho ódio, bem, então que se fosse! Era uma seca aquela ironia constante. . Jorge não respondeu.
E durante a noite Luísa, sem dormir, pensava que aquilo não podia durar!
Estava farta! Aturar a mulher, a sua tirania, e ouvir a todo o momento ditinhos, alusões, ah, não! Era demais! Bastava! Ele começava a desconfiar, a bomba ia estalar! Pois bem, ela mesma chegaria o lume ao rastilho! Ia mandar a Juliana embora! E que mostrasse as cartas, acabou-se! Se ele a metesse num convento, se separasse dela, bem! Sofreria, morreria! Tudo, menos aquele martírio reles, às picadinhas, medonho e grotesco!
—
Que tens tu? — perguntou Jorge meio a dormir, sentindo-a inquieta.
—
Espertina.
—
Coitada! Conta cento e cinquenta para trás! — E voltou-se, enrolando-se comodamente na roupa.
Ao outro dia Jorge levantara-se cedo. Devia encontrar-se com o Alonso, o espanhol das minas, e jantar com ele no Gibraltar. Depois de vestido foi à sala de jantar — eram dez horas — e voltou dizer a Luísa, com uma cortesia profunda, espaçando as palavras: — que não estava a mesa posta! Que as
chávenas do chá « da véspera estavam ainda por lavar! E que a senhora D.
Juliana, a ilustre senhora D. Juliana tinha saído, ao seu passeio!
Eu disse-lhe ontem à noite que me fosse-me ao sapateiro. . — começou Luísa, que vestia o seu roupão.
—
Ah, perdão! — interrompeu Jorge muito cerimoniosamente.
—
Esqueci-me outra vez que se trata de Juliana, tua ama e senhora!
Perdão!
Luísa acudiu logo:
—