—
Ai estou, filha, estou! — E mostrou o corpete lasso.
Já fazia planos. Iria passar a lua-de-mel a Sintra. . Os olhos afogavam-se-lhe num fluido lúbrico.
—
Nossa Senhora da Alegria o permita! Tenho-lhe duas velas acesas, de dia e de noite. .
Mas de repente a voz aflita de Joana bradou da escada da cozinha:
—
Minha senhora! Minha senhora, acuda!
Luísa correu, Jorge também, que ouvira na sala o grito. Juliana estava estendida no soalho da cozinha, desmaiada.
—
Deu-lhe de repente, deu-lhe de repente! — exclamava Joana, muito branca, a tremer. — Tombou pro lado de repente..
Julião tranquilizou-os logo; era uma síncope, simples. Transportaram-na para a cama. Julião fez-lhe esfregar violentamente com uma flanela quente as extremidades — e, mesmo antes que Joana atarantada, em cabelo, corresse à botica por um antiespasmódico, Juliana voltava a si, muito fraca. Quando desceram à, sala, Julião disse, enrolando o cigarro:
—
Não vale nada. São muito frequentes estas síncopes, nas doenças de coração. Esta é simples. Mas é o diabo, às vezes têm um caráter apoplético e vem a paralisia; pouco duradoura, sim, porque a efusão de sangue no cérebro é muito pequena, mas enfim, sempre desagradável. — E acendendo o cigarro:
— Essa mulher um dia morre-lhes em casa.
Jorge, preocupado, passeava pela sala com as mãos nos bolsos.
—
Sempre o tenho dito — acudiu D. Felicidade, baixando a voz, assustada.
—
Sempre o tenho dito. E desfazerem-se dela.
—
Além disso o tratamento é incompatível com o serviço — disse Julião.
—
Enfim, mesmo a engomar roupa se pode tomar digitalis ou quinino; mas é que o verdadeiro tratamento é o repouso, é a absoluta exclusão da fadiga. Que ela um dia se zangue ou que tenha uma manhã de canseira, e pode ir-se!
—
E vai adiantada a doença? — perguntou Jorge.
—
Pelo que ela diz já tem a dificuldade asmática, opressões, uma dor aguda na região cardíaca, flatulência, humidade nas extremidades — o diabo!
—
Olha que espiga! — murmurou Jorge olhando em roda.
—
É pô-la na rua! — resumiu D. Felicidade.
Quando ficaram sós, às onze horas, Jorge disse logo a Luísa:
—
Que te parece esta, hem? É necessário descartarmo-nos da criatura.
Não quero que me morra em casa!
Ela, sem se voltar, diante do toucador, tirando os brincos começou a dizer —
que não se podia mandar também a pobre criatura morrer para a rua. .
Lembrou vagamente o que ela tinha feito pela tia Virgínia. . Ia colocando devagar as suas palavras com a cautela com que se pousa o pé num terreno traiçoeiro. — Podia-se talvez dar-lhe algum dinheiro, que ela fosse viver algures. .
Jorge, depois de um silêncio, respondeu:
—
Não tenho dúvida em lhe dar dez ou doze libras, e que se vá, que se arranje!
"Dez ou doze libras!" — pensou Luísa com um sorriso infeliz. — E à beira do toucador olhava para o seu rosto, ao espelho, com uma indefinida saudade, como se as suas faces devessem dentro em pouco estar cavadas pela aflição, e os seus olhos fatigados pelas lágrimas. .
Porque, enfim, a crise tinha chegado. Se Jorge insistisse em despedir a criatura, ela não podia, sem provocar um espanto e uma explicação, dizer a Jorge: "não quero que ela saia, quero que ela aqui morra!" E Juliana vendo-se expulsa, desesperada, doente, percebendo que Luísa não a defendia, não a reclamava
— vingar-se-ia! Que havia de fazer?
Ergueu-se ao outro dia numa grande agitação. Juliana, muito fatigada, ainda estava na cama. E enquanto Joana punha a mesa, Luísa sentada na poltrona. à janela da sala de jantar, lia maquinalmente o Diário de Notícias, quase sem compreender, quando uma notícia, no alto da página, lhe deu um sobressalto:
"Parte além de amanhã para França o nosso amigo e conhecido banqueiro Castro, da firma Castro Miranda & Cia. A sua Excelência retira-se dos negócios da praça, e vai estabelecer-se definitivamente em França, perto de Bordéus, onde comprou ultimamente uma valiosa propriedade."
O Castro! O homem que lhe dava dinheiro, o que ela quisesse!, dizia Leopoldina. Partia!. . E apesar de ter achado, desde o primeiro momento, aquele recurso infame, vinha-lhe ao seu pesar como uma desconsolação de o ver desaparecer! Porque nunca mais voltaria a Portugal, o Castro!. . E de repente uma ideia atravessou-a, que a fez vibrar toda, erguer-se direita, muito pálida. — Se na véspera da partida dele, Santo Deus! se na véspera ela consentisse!. . Oh! Era horrível! Nem pensar em tal!. .
Mas pensou — e sentia-se toda fraca contra uma tentação crescente, que se lhe enroscava na alma com caricias persuasivas. É que então estava salva!
Dava seiscentos mil réis a Juliana! E o demónio iria morrer para longe!