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Ficaria atrás no camarote. E para as não amarrotar subiu para a almofada.

CAPÍTULO XIII

Passava das oito horas quando o trem parou em São Carlos. Um gaiato, que tossia muito, com o casaco pregado sobre o peito por um alfinete, precipitou-se a abrir a portinhola; e D. Felicidade sorria de contentamento, sentindo a cauda do vestido de seda arrastar sobre o tapete esfiado do corredor das frisas.

O pano já estava levantado. Era à luz diminuída da rampa, a decoração clássica de uma cela de alquimista; embrulhado num roupão monástico, com uma abundância hirsuta de barbas grisalhas, tremuras senis, Fausto cantava, desiludido das ciências, pousando sobre o coração a mão onde reluzia um brilhante. Um cheiro vago de gás extravasado errava sutilmente. Aqui e além tosses expetoravam. Havia ainda pouca gente. Entrava-se.

Na frisa, para se colocarem, D. Felicidade e Luísa cochichavam, com gestozinhos de recusa, olhares suplicantes:

Oh, D. Felicidade, por quem é!

Se estou aqui muito bem..

Não consinto...

Enfim D. Felicidade sentou-se no lugar superior alteando o peito. Luísa ficara atrás calçando as luvas; enquanto Jorge arrumava os agasalhos, furioso com o chapéu que já duas vezes rolara.

Tem banquinho, D. Felicidade?

Obrigada, cá o sinto. — E remexeu os pés. — Que pena não se ver a família real!

Nos camarotes de assinantes iam aparecendo os altos penteados medonhos, enchumaçados de postiços; peitilhos de camisas branquejavam. Sujeitos entravam para as cadeiras devagar, com um ar gasto e íntimo, compondo o cabelo. Conversava-se baixo. Ao fundo da plateia havia um rumor desinquieto entre moços de jaquetão; e à entrada, sob a tribuna, viam-se, num aparato militar, correames polidos de municipais, bonés carregados de polícias; e reluzindo à luz, punhos de sabres.

Mas na orquestra correram fortes estremecimentos metálicos, dando um pavor sobrenatural; Fausto tremia como um arbusto ao vento; um ruído de folhas de lata, fortemente sacudidas, estalou; e Mefistófeles ergueu-se ao fundo, escarlate, lançando a perna com um ar charlatão, as duas sobrancelhas arrebitadas, uma barbilha insolente, un bel cavalier; e enquanto a sua voz poderosa saudava o doutor, as duas plumas vermelhas do gorro oscilavam sem cessar de um modo fanfarrão.

Luísa chegara-se para a frente; ao ruído da cadeira, cabeças na plateia voltaram-se, languidamente; pareceu decerto bonita, examinaram-na; ela, embaraçada, pôs-se a olhar para o palco muito séria: — por trás de véus sobrepostos que se levantavam, numa afetação de visão, Margarida apareceu

fiando o linho, toda vestida de branco; a luz elétrica, envolvendo-a num tom cru, fazia-a parecer de gesso muito caiado; e D. Felicidade achou-a tão linda que a comparou a uma santa!

A visão desapareceu num trémulo de rebecas. E depois de uma ária, Fausto, que ficara imóvel ao fundo do palco, debateu-se um momento dentro da túnica e das barbas, e emergiu jovem, gordinho, vestido de cor de lilás, coberto de pós-de-arroz, compondo o frisado do cabelo. As luzes da rampa subiram; uma instrumentação alegre e expansiva ressoou; Mefistófeles, apossando-se dele, arrastou-o sôfrego através da decoração. E o pano desceu rapidamente.

As plateias ergueram-se com um rumor grosso e lento. D. Felicidade um afrontada abanava-se. Examinaram então as famílias, algumas toaletes; e sorrindo concordaram que estava do mais fino.

Nos camarotes conversava-se sobriamente; às vezes uma joia brilhava, ou a luz punha tons lustrosos de asa de corvo nos cabelos pretos onde alvejavam camélias ou reluzia o aro de metal de um pente; os vidros redondos dos binóculos moviam-se devagar, picados de pontos luminosos.

Na plateia, nas bancadas clareadas, sujeitos quase deitados namoravam com languidez; ou de pé, taciturnos, acariciavam as luvas; velhos diletantes, de lenço de seda, tomavam rapé, caturravam; e D. Felicidade interessava-se por

duas espanholas de verde, que na superior imobilizavam, numa afetação casta, os seus corpos de lupanar.

Um colega de Jorge, magrinho e janota, entrou então no camarote: parecia animado e perguntou logo se não sabiam o grande escândalo!... Não. E o engenheiro, com gestos vivos das suas mãozinhas calçadas numas luvas esverdeadas, contou que a mulher do Palma, o deputado, sabiam, tinha fugido!. .

Para o estrangeiro?

Qual! — E a voz do engenheiro tinha agudos triunfantes. — Ai é que estava o bonito. Para casa de um espanhol que morava em frente!. . Era divino! De resto — e a sua voz tornou-se grave e estava entusiasmado com o baixo!

E depois de ter sorrido, olhado pelo binóculo, ficou calado, extenuado do que dissera, batendo apenas de vez em quando no joelho de Jorge, com um "Sim, Senhor!" familiar, ou um "Então que é feito?" amigável.

Mas a campainha retinia finamente. O engenheiro saiu, em bicos de pés. E o pano ergueu-se devagar na alegria da quermesse, cheia de uma luz branca e dura. Casas acasteladas branquejavam no pano de fundo, nalguma colina do Reno amiga das vinhas. Escarranchado sobre uma pipa, o barrigudo e folgazão Rei Cambrinus ria enormemente, erguendo, na sua atitude de tabuleta gótica, a vasta caneca emblemática da cerveja germânica. E

estudantes, judeus, reitres e donzelas, nas suas cores vivas de paninho, moviam-se de um modo automático e sonâmbulo, aos compassos largos da instrumentação festiva.

A valsa então desenrolou-se languidamente, como um fio de melodia, em espirais suaves que ondeavam e fugiam: Luísa seguia os pezinhos das dançarinas, as pernas musculosas volteando no tablado; e as saias tufadas e curtas faziam como o girar multiplicado e reproduzido de vagos discos de cambraia.

Que bonito! — murmurava ela com uma felicidade no rosto.

De apetite — afirmava D. Felicidade revirando os olhos.

Certas agudezas delicadas de flautins enterneciam Luísa; e a casa, Juliana, as suas misérias, tudo lhe parecia recuado, no fundo de uma noite esquecida.

Mas o jovial Diabo adiantava-se por entre os grupos, e logo, com gestos aduncos e rapaces, cantou o Dio del oro. A sua voz arremessada afirmava, num tom brutal, o poder do dinheiro; nas massas da instrumentação passavam sonoridades claras e tilintantes de um remexer sôfrego de tesouros; e as notas altas finais caíam, de um modo curto e seco, como marteladas triunfantes cunhando o divino ouro!

Luísa então viu D. Felicidade perturbar-se; e seguindo o seu olhar negro, subitamente avivado, descobriu na geral a calva polida do Conselheiro Acácio

que cumprimentava, prometendo generosamente, com a mão espalmada, a sua visita próxima.

Veio, apenas o pano desceu, e felicitou-as imediatamente por terem escolhido aquela noite: a ópera era das melhores e estava gente muito fina. Lamentou ter perdido o primeiro acto; ainda que não gostasse extremamente da música, apreciava-o por ser muito filosófico. E, tomando da mão de Luísa o binóculo, explicou os camarotes, disse os títulos, citou as herdeiras ricas, nomeou os deputados, apontou os literatos. — Ah! Conhecia bem São Carlos! Havia dezoito anos!

D. Felicidade, rubra, admirava-o. O Conselheiro sentia que não pudessem ver o camarote real: a rainha, como sempre, estava adorável.

Sim? Como estava?

De veludo. Não sabia se roxo, se azul-escuro. Afirmar-se-ia, e viria dizer..

Mas quando o pano subiu, ficou sentado por trás de Luísa começando logo a explicar — que aquela (Siebel, colhendo flores no jardim de Margarida), posto que segunda dama, ganhava quinhentos mil réis por mês...

Mas apesar destes ordenadões morrem quase sempre na miséria —

disse com reprovação. — Vícios, ceias, orgias, cavalgadas...

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