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A portinha verde do jardim abriu-se, e Margarida entrou devagar, desfolhando o malmequer da legenda, caracterizada de virgem, com as duas longas tranças

louras. Cismava, falava só, amava: a doce criatura sente em volta de si o ar pesado, e quereria bem que a sua mãe voltasse!

Os olhos de Luísa encheram-se então de melancolia, com a saudosa balada do rei de Tule; aquela melodia dava-lhe a vaga sensação de um pálido país de amores espirituais, banhado de luares frios, longe, no Norte, junto a um mar gemente — ou de tristezas aristocráticas, cismadas num terraço, sob a sombra de um parque..

Mas o Conselheiro preveniu-as, dizendo:

Agora é que é! Reparem. Agora é o ponto capital.

De joelhos, diante do cofre das joias, a dama requebrava-se, garganteando; apertava nas mãos o colar, extasiada; punha os brincos com denguices delirantes; e da sua boca muito aberta saía um canto trinado, de uma cristalinidade aguda — entre o vago sussurro da admiração burguesa.

O Conselheiro disse discretamente:

Bravo! Bravo!

E, excitado, dissertou: aquilo era o melhor da ópera! Era ali que se via a força das cantoras...

D. Felicidade quase tinha medo que lhe estalasse alguma coisa na garganta.

Preocupava-se também com as joias. Seriam falsas? Seriam dela?

É para a tentar, não é verdade?

É um drama alemão — disse-lhe baixo o Conselheiro.

Mas Mefistófeles ia arrastando a boa Marta; Fausto e Margarida perdiam-se nas sombras cúmplices do jardim afrodisíaco — e o Conselheiro observou que todo aquele acto era um pouco fresco.

D. Felicidade murmurou-lhe — entre repreensiva e extática:

Quantas cenas não terá tido assim, maganão!

O Conselheiro fitou-a, indignado:

O quê, minha senhora? Levar a desonra ao seio de uma família!

Luísa fez-lhe chuta, sorrindo. Interessava-se agora. Tinha escurecido; uma faixa de luz elétrica enchia o jardim de um vago luar azulado, onde os maciços arredondados se recortavam a pastas escuras; e Fausto e Margarida enlaçados, quase desfalecidos soltavam de um modo expirante o seu dueto: uma sensualidade delicada e moderna, com relances de um requinte devoto, arrastava-se na orquestra gemente; o tenor esforçava-se, agarrando o peito, com um jeito mórbido dos quadris, o olhar anuviado; e desprendendo-se da lânguida arcada dos violoncelos, o canto subia para as estrelas...

Al pallido chiarore dei astri d'oro.

Mas o coração de Luísa batia precipitadamente; vira-se de repente sentada no divã, na sua sala, ainda tomada dos soluços do adultério, e Basílio, com o charuto ao canto da boca, batia distraído no piano aquela ária — "Al pallido chiarore dei astri d'oro". Dessa noite tinha vindo toda a sua miséria! — e subitamente, como longos véus fúnebres que descem e abafam, as recordações de Juliana, da casa, de Sebastião, vieram escurecer-lhe a alma.

Olhou o relógio. Eram dez horas. Que se passaria?

Estás incomodada? — perguntou-lhe Jorge.

Um pouco.

Margarida apoiava-se, expirante de voluptuosidade, ao rebordo da sua janelinha. Fausto corre. Enlaçam-se. E entre as gargalhadas do Diabo e o roncar dos rabecões — o pano desceu, pondo uma reticência pudica. .

D. Felicidade, abrasada, quis água. Jorge apressou-se: queria bolos? Neve? A excelente senhora hesitou; o chique da neve atraía-a, mas coibiu-se com terror da cólica. Veio sentar-se ao fundo ao pé de Luísa, e ficou a olhar, vagamente cansada; havia um sussurro lento; bocejava-se discretamente; e o fumo dos cigarros, entrando de fora, fazia uma névoa apenas percetível que enchia a sala, ia prender-se ao lustre, embaciando ligeiramente as luzes. Quando Jorge saiu o Conselheiro acompanhou-o; ia acima tomar o seu copo de gelatina. .

É a minha ceia em dia de São Carlos — disse.

Voltou daí a pouco, limpando os beiços ao lenço de seda, ter com Jorge que fumava no pequeno patamar junto à entrada das cadeiras:

Veja isto, Conselheiro! — disse-lhe logo Jorge indignado, mostrando a parede. — Que escândalo!

Tinham desenhado, com o charuto apagado sobre a parede caiada, enormes figuras obscenas; e alguém, prudente e amigo da clareza, juntara por baixo as designações sexuais com uma boa letra cursiva.

E Jorge, revoltado:

E passam por aqui senhoras! Veem, leem! Isto só em Portugal!. .

O Conselheiro disse:

A autoridade devia intervir, decerto. . — Acrescentou com bonomia: —

São rapazes, com o charuto. Apreciam muito esta distração... — E sorrindo, recordando-se: — Uma ocasião mesmo, o Conde de Vila Rica, que tem graça, muita graça, insistiu comigo, dando-me o charuto, para que eu fizesse um desenho... — E mais baixo: — Eu dei-lhe uma lição severa. Tomei o charuto...

E fumou-o?

Are sens