A vida pesava-lhe. Apenas ele pela manhã saía e fechava a cancela, logo as suas tristezas, os seus receios lhe desciam sobre a alma, devagar, como grandes véus espessos que se abatem lugubremente; não se vestia então até às quatro, cinco horas, e com o roupão solto, em chinelas, despenteada, arrastava o seu aborrecimento pelo quarto. Vinham-lhe, por momentos, de repente, desejos de fugir, ir meter-se num convento! A sua sensibilidade muito exaltada impeli-la-ia decerto a alguma resolução melodramática — se a não retivesse, com a força de uma sedução permanente, o seu amor por Jorge. Porque o amava agora, imensamente! Amava-o com cuidados de mãe, com ímpetos de
concubina... Tinha ciúmes de tudo, até do ministério, até do relatório! Ia interrompê-lo a cada momento, tirar-lhe a pena da mão, reclamar o seu olhar, a sua voz; e os passos dele no corredor davam-lhe o alvoroço dos amores ilegítimos. .
De resto ela mesma se esforçava por desenvolver aquela paixão, achando nela a compensação inefável das suas humilhações. Como lhe viera aquilo? Porque sempre o amara, decerto, reconhecia-o agora — mas não tanto, não tão exclusivamente! Nem ela sabia. Envergonhava-se mesmo, sentindo vagamente naquela violência amorosa pouca dignidade conjugal; suspeitava que o que tinha era apenas um capricho. Um capricho pelo seu marido! Não lhe parecia rigorosamente casto. . Que lhe importava, de resto? Aquilo fazia-a feliz, prodigiosamente. Fosse o que fosse, era delicioso!
Ao princípio a ideia do outro pairava constantemente sobre esse amor, pondo um gosto infeliz em cada beijo, um remorso em cada noite. Mas pouco a pouco esquecera-o tanto, o outro — que a sua recordação, quando por acaso voltava, não dava mais amargor à nova paixão, que um torrão de sal pode dar às águas de uma torrente. Que feliz que seria — se não fosse a infame!
Era a infame que se sentia feliz! Às vezes só no seu quarto, punha-se a olhar em redor com um riso de avaro: desdobrava, batia os vestidos de seda; punha as botinas em fileira, contemplando-as de longe, extática; e debruçada sobre as gavetas abertas da cómoda contava, recontava a roupa branca, acariciando-a
com o olhar de posse satisfeita. Como a da Piorrinha! — murmurava, afogada em júbilo.
—
Ai! Estou muito bem! — dizia ela à tia Vitória.
—
Que dúvida que estás! A carta não te rendeu um conto de réis, mas olha que te trouxe um par de regalos. E é que há de ser uma pingadeira; há de ser a boa peça de linho, o bom adereço, boas moedas.. E ainda muito obrigada por cima. Carda-a; filha, carda-a!
Mas já havia pouco que cardar. E lentamente Juliana começou a pensar, que agora o que devia era gozar. Se tinha bons colchões — para que se havia de levantar cedo? Se tinha bons vestidos — porque não havia de ir espairecer para a rua? Toca a tirar partido!
Uma manhã que estava mais frio deixou-se ficar na cama até às nove horas, as janelas entreabertas, um bom raio de sol na esteira. Depois explicou secamente, que tinha estado com a dor. Daí a dois dias Joana, às dez horas, veio dizer baixo a Luísa:
—
A Sra. Juliana ainda está na cama; está tudo por arrumar. Luísa ficou aterrada. O quê? Teria de sofrer os seus desmazelos, como as suas exigências?
Foi ao quarto dela:
—
Então você levanta-se a estas horas?
—
Foi o que me recomendou o médico — replicou muito insolente.
E daí por diante Juliana poucas vezes se erguia antes da hora de servir ao almoço. Luísa pediu logo a Joana que fizesse o serviço por ela: era por pouco tempo; a pobre criatura andava tão adoentada! E para acomodar a cozinheira deu-lhe meia moeda, para a ajuda de um vestido.
Juliana depois sem pedir licença, começou a sair. Quando voltava tarde para o jantar, não se desculpava.
Um dia Luísa não se conteve; disse-lhe, vendo-a passar no corredor e calçar as luvas pretas:
—
Você vai sair?
Ela respondeu, muito atrevidamente:
—
É como vê. Fica tudo arrumado, tudo o que é minha obrigação. E
abalou, batendo os tacões.
Ora, não lhe faltava mais nada senão estar a constranger-se por causa da Piorrinha!
Joana começava a resmungar: "passa a sua vida na rua a Sra. Juliana e eu é que aguento.. "
—
Se você estivesse doente, também ninguém lhe ia à mão — acudiu Luísa; aflita, quando percebia estas revoltas. E presenteava-a. Dava-lhe mesmo vinho e sobremesa.
Havia agora um desperdício na casa. Os róis cresciam. Luísa andava sucumbida. — Como acabaria tudo aquilo?
Os desleixos de Juliana iam-se tornando graves.
Para sair mais cedo fazia apenas o essencial. Era Luísa que acabava de encher os jarros, que levantava muitas vezes a mesa do almoço, que levava para o sótão roupa suja que ficava pelos cantos. .
Um dia Jorge que entrara às quatro horas, viu por acaso a cama por fazer.
Luísa apressou-se a dizer que Juliana saíra, mandara-a ela à modista.
Daí a dias, eram seis horas, ainda não tinha voltado para servir ao jantar.
Tinha ido à modista. ., explicou Luísa.
—