—
"Chorai! Chorai! Enquanto a mim, a dor sufoca-me!"
Esfregou as mãos com orgulho. Repetiu alto num tom plangente:
—
"Chorai, chorai; enquanto a mim, a dor sufoca-me!" — E passando o braço concupiscente pela cinta da Adelaide, exclamou:
—
Está de fazer sensação, minha Adelaide!
Ergueu-se. Tinha terminado o seu dia. Fora bem preenchido e digno; de manhã certificara-se com regozijo no Diário do Governo, que a família real
"passava sem novidade"; cumprira o dever de amigo, acompanhando Luísa
aos Prazeres numa carruagem da Companhia; a alta das inscrições assegurava-lhe a paz da sua pátria; compusera uma prosa notável; a sua Adelaide amava-o!
E decerto se deliciou na certeza destas felicidades, que contrastavam tanto com as imagens sepulcrais que a sua pena revolvera, porque Adelaide ouviu-o murmurar:
—
A vida é um bem inestimável! — E acrescentar como bom cidadão: Sobretudo nesta era de grande prosperidade pública!
E entrou no quarto com a cabeça ereta, o peito cheio, os passos firmes, erguendo alto o castiçal.
A sua Adelaide seguia-o bocejando; estava cansada da constipação e — de uma hora de ternuras, que tivera à tardinha, com o louro e meigo Arnaldo, caixeiro da Loja da América.
Àquela hora dois homens desciam de uma carruagem à porta do Hotel Central; um trazia uma ulster de xadrez, o outro uma longa peliça. Um ónibus quase ao mesmo tempo parou, carregado de bagagens.
Um criado alemão, que conversava embaixo com o porteiro, reconheceu-os logo, e tirando o coco:
—
Oh, senhor D. Basílio! Oh, senhor visconde!
O Visconde Reinaldo, que batia os pés nas lajes, rosnou de dentro da sua peliça:
—
É verdade, aqui estamos outra vez na pocilga!
Mas àquela hora?
—
A que horas queria você que chegássemos? Às horas da tabela, talvez!
Doze horas de atraso, essa bagatela! Em Portugal é quase nada. .
—
Houve algum transtorno? — perguntava o criado com solicitude, seguindo-os pela escada.
E Reinaldo, pisando com um pé nervoso o esparto do corredor:
—
O transtorno nacional! Descarrilou tudo! Estamos aqui por milagre!
Abjeto país!... — E desabafava a sua cólera com o criado: tê-la-ia desabafado com as pedras da rua, tanto era o excesso da bílis: — Há um ano que a minha oração é esta: "Meu Deus, manda-lhe outra vez o terramoto!" Pois todos os dias leio os telegramas a ver se o terramoto chegou. . e nada! Algum ministro que cai, ou algum barão que surge. E de terramoto nada! O Omnipotente faz ouvidos de mercador às minhas preces. . Protege o país! Tão bom é um como outro! — E sorria, vagamente reconhecido a uma nação, cujos defeitos lhe forneciam tantas pilhérias.
Mas quando o criado, muito consternado, lhe declarou — que não havia senão um salão e uma alcova com duas camas, no terceiro andar — a cólera de Reinaldo não conheceu restrições:
—
Então havemos de dormir no mesmo quarto? Você pensa que o senhor D. Basílio é meu amante, seu devasso? Está tudo cheio? Mas quem diabo se lembra de vir a Portugal? Estrangeiros? É justamente o que me espanta! — E
encolhendo os ombros com rancor: — É o clima, é o clima que os atrai! O
clima, este prodigioso engodo nacional! Um clima pestífero. Não há nada mais reles de que um bom clima!. .
E não cessou de invetivar o seu país, enquanto o criado à pressa, sorrindo servilmente, punha sobre a jardineira pratos, fiambre, um frango frio e borgonha.
Reinaldo vinha vender a última propriedade, e acompanhara Basílio que voltava a terminar "o secante negócio da borracha". E não cessava de rosnar soturnamente de dentro da peliça:
—
Aqui estamos! Aqui estamos no chiqueiro!
Basílio não respondia. Desde que chegara a Santa Apolónia, recordações do Paraíso, da casa de Luísa, de todo aquele romance do verão passado, começavam a voltar, a atrai-lo, com um encanto picante. Fora encostar-se à vidraça. Uma lua fria, lívida, corria agora entre grossas nuvens cor de chumbo; às vezes uma grande malha luminosa caía sobre a água, faiscava; depois tudo escurecia; vagas mastreações desenhavam-se na obscuridade difusa; e algum fanal de navio tremeluzia friamente.
"Que fará ela a esta hora!" — pensava Basílio. — naturalmente, deitava-se. .
Mal sabia que ele estava ali, num quarto do Hotel Central..
Cearam.
Basílio levou a garrafinha de conhaque para a cabeceira da cama; e com a cara coberta de pó-de-arroz, os folhos da sua camisa de dormir abertos sobre o peito, muito estendido, soprando o fumo do charuto, gozava uma lassidão confortável.
—
E amanhã estou-te daqui a ver — disse Reinaldo. — Vai-te logo meter com a prima!
Basílio sorriu; o seu olhar errou um pouco pelo teto; certas recordações das belezas dela, do seu temperamento amoroso, trouxeram-lhe uma vaga voluptuosidade; espreguiçou-se. — Que diabo! — disse — é uma linda rapariga! Vale imenso a pena! — Bebeu mais um cálice de conhaque, e daí a pouco dormia profundamente. Era meia-noite.
Àquela hora Jorge acordava, e sentado numa cadeira, imóvel, com soluços cansados que ainda o sacudiam, pensava nela. Sebastião, no seu quarto, chorava baixo. Julião, no posto médico, estendido num sofá, lia a Revista dos Dois Mundos. Leopoldina dançava numa soirée da Cunha. Os outros dormiam. E o vento frio que varria as nuvens e agitava o gás dos candeeiros ia fazer ramalhar tristemente uma árvore sobre a sepultura de Luísa.