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Luísa, quando o sentiu embaixo fechar a porta da rua, entrou no quarto, atirou o chapéu para a poltrona, e foi-se logo ver ao espelho. Que felicidade estar vestida! Se ele a tivesse apanhado em roupão, ou mal penteada!. . Achou-se muito afogueada, cobriu-se de pó-de-arroz. Foi à janela, olhou um momento a rua, o sol que batia ainda nas casas carairas. Sentia-se cansada. Aquelas horas Leopoldina estava a jantar já, decerto.. Pensou em escrever a Jorge "para

matar o tempo", mas veio-lhe uma preguiça; estava tanto calor! Depois não tinha que lhe dizer! Começou então a despir-se devagar diante do espelho, olhando-se muito, gostando de se ver branca, acariciando a finura da pele, com bocejos lânguidos de um cansaço feliz. — Havia sete anos que não via o primo Basílio! Estava mais trigueiro, mais queimado; mas ia-lhe bem!

E depois de jantar ficou junto à janela, estendida na poltrona, com um livro esquecido no regaço. O vento caíra e o ar, de um azul forte nas alturas, estava imóvel; a poeira grossa pousara; a tarde tinha uma transparência calma de luz; pássaros chilreavam na figueira brava; da serralharia próxima saia o martelar contínuo e sonoro de folhas de ferro. Pouco a pouco o azul desbotou; sobre o poente, laivos de cor de laranja desmaiada esbateram-se como grandes pinceladas desleixadas. Depois tudo se cobriu de uma sombra difusa, calada e quente, com uma estrelinha muito viva que luzia e tremia. E Luísa deixara-se ficar na poltrona esquecida, absorvida, sem pedir luz.

"Que vida interessante a do primo Basílio!" — pensava. — "O que ele tinha visto!" Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir, admirar aspetos novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os países que conhecia dos romances — a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios trágicos; aportar às baias, onde um mar luminoso e faiscante morre na areia fulva; e das cabanas dos pescadores de teto chato, onde vivem as Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas de

nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria decerto; eram pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta!

Como seria o patriarca de Jerusalém? Imaginava-o de longas barbas brancas, recamado de ouro, entre instrumentações solenes e rolos de incenso! E a Princesa de La Tour d'Auvergne? Devia ser bela, de uma estatura real, vivia cercada de pajens, namorara-se de Basílio. — A noite escurecia, outras estrelas luziam. — Mas de que servia viajar, enjoar nos paquetes, bocejar nos vagões, e, numa diligência muito sacudida, cabecear de sono pela serra nas madrugadas frias? Não era melhor viver num bom conforto, com um marido terno, uma casinha abrigada, colchões macios, uma noite de teatro às vezes, e um bom almoço nas manhãs claras quando os canários chalram? Era o que ela tinha. Era bem feliz. Então veio-lhe uma saudade de Jorge; desejaria abraçá-lo, tê-lo ali, ou descesse ir encontrá-lo fumando o seu cachimbo no escritório, com o seu de veludo. Tinha tudo, ele, para fazer uma mulher feliz e orgulhosa: era belo, com uns olhos magníficos, terno, fiel. Não gostaria de um marido com uma vida sedentária e caturra; mas a profissão de Jorge era interessante; descia aos tenebrosos das minas; um dia aperrara as pistolas contra uma malta revoltada; era valente; tinha talento! Involuntariamente, porém, o primo Basílio fazendo flutuar o seu bornous branco pelas planícies da Terra Santa, ou em Paris, direito na almofada, governando tranquilamente os seus cavalos inquietos — davam-lhe a ideia de uma outra existência mais poética, mais própria para os episódios do sentimento.

Do céu estrelado caía uma luz difusa; janelas alumiadas sobressaíam ao longe, abertas à noite abafada; voos de morcegos passavam diante da vidraça.

A senhora não quer luz? — perguntou à porta a voz fatigada de Juliana.

Ponha-a no quarto.

Desceu. Bocejava muito; sentia-se quebrada.

"É trovoada" — pensou.

Foi à sala, sentou-se ao piano, tocou ao acaso bocados da Lúcia, da Sonâmbula, o Fado; e parando, os dedos pousados de leve sobre o teclado, pôs-se a pensar que Basílio devia vir no dia seguinte; vestiria o roupão novo de fular cor de castanho! Recomeçou o Fado, mas os olhos cerravam-se-lhe.

Foi para o quarto.

Juliana trouxe o rol e a lamparina. Vinha arrastando as chinelas, com um casabeque pelos ombros, encolhida e lúgubre. Aquela figura com um ar de enfermaria irritou Luísa:

Credo, mulher! Você parece a imagem da morte!

Juliana não respondeu. Pousou a lamparina; apanhou, placa a placa, sobre a cómoda, o dinheiro das compras; e com os olhos baixos:

A senhora não precisa mais nada, não?

Vá-se, mulher, vá!

Juliana foi buscar o candeeiro de petróleo, subiu ao quarto. Dormia em cima, no sótão, ao pé da cozinheira.

Pareço-te a imagem da morte! — resmungava, furiosa.

O quarto era baixo, muito estreito, com o teto de madeira inclinado; o sol, aquecendo todo o dia as telhas por cima, fazia-o abafado como um forno; havia sempre à noite um cheiro requentado de tijolo escandecido. Dormia num leito de ferro, sobre um colchão de palha mole coberto de uma colcha de chita; da barra da cabeceira pendiam os seus bentinhos e a rede enxovalhada que punha na cabeça; ao pé tinha preciosamente a sua grande arca de pau, pintada de azul, com uma grossa fechadura. Sobre a mesa de pinho estava o espelho de gaveta, a escova de cabelos enegrecida e despelada, um pente de osso, as garrafas de remédio, uma velha pregadeira de cetim amarelo, e, embrulhada num jornal, a cuja de retrós dos domingos. E o único adorno das paredes sujas, riscadas da cabeça de fósforos — era uma litografia da nossa Senhora das Dores por cima da cama, e um daguerreótipo onde se percebia vagamente, no reflexo espelhado da lâmina, os bigodes encerados e as divisas de um sargento.

A senhora já se deitou, Sra. Juliana? — perguntou a cozinheira do quarto pegado, de onde saía uma barra de luz viva cortando a escuridão do corredor.

Já se deitou, Sra. Joana, já. Está hoje com os azeites. Falta-lhe o homem!

Joana, às voltas, fazia ranger as madeiras velhas da cama. Não podia dormir!

Abafava-se!

Uf!

Ai! E aqui! — exclamou Juliana.

Abriu o postigo que dava para os telhados, para deixar arejar; calçou as chinelas de tapete, e foi ao quarto de Joana. Mas não entrou, ficou à porta; era criada de dentro, evitava familiaridades. Tinha tirado a cuja, e com um lenço preto e amarelo amarrado na cabeça, o seu rosto parecia mais chupado, e as orelhas mais despegadas do crânio; a camisa decotada descobria as clavículas descarnadas; a saia curta mostrava as canelas muito brancas, muito secas. E

com o casabeque pelos ombros, coçando devagarinho os cotovelos agudos:

Diga-me cá, Sra. Joana — disse com a voz discreta —, aquele sujeito demorou-se muito? Reparou?

Tinha saído naquele instantinho, quando vossemecê entrou. Uf!

Encalmada, quase descoberta, com as pernas muito abertas, Joana coçava-se furiosamente por baixo da grossa camisa com folhos à minhota que lhe descobria os peitos. Não podia parar com os percevejos! O raio do quarto tinha ninhos! Até sentia o estômago embrulhado.

Ai! É um inferno! — disse com lástima Juliana. — Eu só adormeço com dia. Mas ainda eu agora reparo. . Vossemecê tem São Pedro à cabeceira.

É devoção?

E o santo do meu rapaz — disse a outra. Sentou-se na cama. Uf! E

então tinha estado toda a noite com uma sede!. .

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