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Foi para o quarto. Rezou, apagou a luz. Um calor mole e contínuo caía do forro; começou a faltar-lhe o ar; tornou a abrir o postigo, mas o bafo quente que vinha dos telhados enjoava-a: e era assim todas as noites, desde o começo do estio! Depois as madeiras velhas fervilhavam de bicharia! Nunca, nunca, nas casas que servira, tinha tido um quarto pior. Nunca!

A cozinheira começou a ressonar ao lado. E acordada, às voltas, com aflições no coração, Juliana sentia a vida pesar-lhe, com uma amargura maior!

Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana coiceiro Tavira. A sua mãe fora engomadeira; e desde pequena tinha conhecido em casa um sujeito, a quem chamavam na vizinhança — o "Fidalgo", a quem sua mãe chamava — o senhor D. Augusto. Vinha todos os dias, de tarde no verão, no inverno de manhã, para a saleta onde sua mãe engomava, e ali estava horas sentado no poial da janela que dava para um quintal e, fumando cachimbo, cofiando em silêncio um enorme bigode preto. Como o poial era de pedra, punha-lhe em cima, com muito método, uma almofada de vento, que ele mesmo soprava.

Era calvo, e trazia ordinariamente uma quinzena de veludo castanho e chapéu alto branco. Às seis horas levantava-se, esvaziava a almofada, estava um bocado a esticar as calças para cima, e saía, com a sua grossa bengala de cana-da-índia debaixo do braço, gingando da cinta. Ela e a sua mãe iam então jantar na mesinha de pinho da cozinha debaixo de um postigo, diante do qual se

balouçavam, de verão e de inverno, galhos magros de uma árvore triste.

À noite o senhor D. Augusto voltava; trazia sempre um jornal; sua mãe fazia-lhe chá e torradas, servia-o, toda enlevada nele. Muitas vezes Juliana a vira chorar de ciúmes.

Um dia uma vizinha má, a quem ela não quisera ajudar a lavar a roupa, enfureceu-se, e atirando-lhe injúrias dos degraus da porta — gritou-lhe que a sua mãe era uma desavergonhada, e que o seu pai estava na África por ter morto o Rei de Copos!

Pouco tempo depois foi servir. A sua mãe morreu daí a meses, com uma doença de útero. Juliana só uma vez tornou a ver o senhor D. Augusto —

uma tarde, com uma opa roxa, lúgubre, na procissão de Passos!

Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde!. . Era demais! Tinha agora dias em que só de ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca se acostumara a servir. Desde rapariga a sua ambição fora ter um negociozito, uma tabacaria, uma loja de capelista ou de quinquilharias, dispor, governar, ser patroa; mas, apesar de economias

mesquinhas e de cálculos sôfregos, o mais que conseguira juntar foram sete moedas ao fim de anos; tinha então adoecido; com o horror do hospital fora tratar-se para casa de uma parenta; e o dinheiro, ai! derretera-se! No dia em que se trocou a última libra, chorou horas com a cabeça debaixo da roupa.

Ficou sempre adoentada desde então; perdeu toda a esperança de se estabelecer. Teria de servir até ser velha, sempre, de amo em amo! Essa certeza dava-lhe uma desconsolação constante. Começou a azedar-se.

E depois não tinha "jeito", não sabia tirar partido das casas; via companheiras divertir-se, vizinhar, janelar, bisbilhotar, sair aos domingos às hortas e aos retiros; levar o dia cantando, e quando as patroas iam ao teatro, abrir a porta aos derriços — e patuscar pelos quartos! Ela não. Sempre fora embezerrada.

Fazia a sua obrigação, comia, ia estirar-se sobre a cama; e aos domingos, quando não passeava, encostava-se a uma janela, com o lenço sobre o peitoril para não roçar as mangas, e ali estava imóvel, a olhar, com o seu broche de filigrana e a cuia dos dias santos! Outras companheiras eram muito das amas, faziam-se muito humildes, sabujavam, traziam de fora as histórias da rua, e cartinhas levadas e recadinhos para dentro e para fora, muito confidentes —

muito presenteadas também! Ela não podia. Era "minha senhora isto! minha senhora aquilo!" E cada uma no seu lugar! Era génio!

Desde que servia, apenas entrava numa casa sentia logo, num relance, a hostilidade, a malquerença; a senhora falava-lhe com secura, de longe; as

crianças tomavam-lhe birra; as outras criadas, se estavam chalrando, calavam-se, mal a sua figura esguia aparecia; punham-lhe alcunhas — a "Isca Seca", a

"Fava Torrada", o "Saca-Rolhas"; imitavam-lhe os trejeitos nervosos; havia risinhos, cochichos pelos cantos; e só tinha encontrado alguma simpatia nos galegos taciturnos, cheios de uma saudade morrinhenta, que vêm de manhã quando ainda os quartos estão escuros, com as suas grossas passadas, encher os barris, engraxar o calçado.

Lentamente, começou a tornar-se desconfiada, cortante como um nordeste; tinha respostadas, questões com as companheiras; não se havia de deixar pôr o pé no pescoço!

As antipatias que a cercavam faziam-na assanhada, como um círculo de espingardas enraivece um lobo. Fez-se má; beliscava crianças até lhes enodoar a pele; e se lhe ralhavam, a sua cólera rompia em rajadas. Começou a ser despedida. Num só ano esteve em três casas. Saía com escândalo, aos gritos, atirando as portas, deixando as amas todas pálidas, todas nervosas. .

A inculcadeira, a sua velha amiga, a tia Vitória, disse-lhe:

— Tu acabas por não ter onde te arrumar, e falta-te o bocado do pão!

O pão! Aquela palavra que é o terror, o sonho, a dificuldade do pobre assustou-a. Era fina, e dominou-se. Começou a fazer-se "uma pobre mulher", com afetações de zelo, um ar de sofrer tudo, os olhos no chão. Mas roía-se

por dentro; veio-lhe a inquietação nervosa dos músculos da face, o tique de franzir o nariz; a pele esverdeou-se-lhe de bílis.

A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar; odiou sobretudo as patroas, com um ódio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes, e pobres, mulheres de empregados, velhas e raparigas, coléricas e pacientes; — odiava-a todas, sem diferença. É patroa e basta! Pela mais simples palavra, pelo acto mais trivial! Se as via sentadas: "Anda, refestela-te, que a moura trabalha!" Se as via sair: "Vai-te, a negra cá fica no buraco!" Cada riso delas era uma ofensa à sua tristeza doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestido de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa. Rogava-lhes pragas. Se os amos tinham um dia de contrariedade, ou via as caras tristes, cantarolava todo o dia em voz de falsete a "Carta Adorada"! Com que gosto trazia a conta retardada de um credor impaciente, quando pressentia embaraços na casa! "Este papel!" —

gritava com uma voz estridente — "diz que não se vai embora sem uma resposta!" Todos os lutos a deleitavam — e sob o xale preto, que lhe tinham comprado, tinha palpitações de regozijo. Tinha visto morrer criancinhas, e nem a aflição das mães a comovera; encolhia os ombros: "Vai dali, vai fazer outro. Cabras!"

As boas palavras mesmo, as condescendências eram perdidas com ela, como gotas de água lançadas no fogo. Resumia as patroas na mesma palavra — uma récua! E detestava as boas pelos vexames que sofrera das más. A ama era para

ela o inimigo, o tirano. Tinha visto morrer duas — e de cada vez sentira, sem saber porquê, um vago alívio, como se uma porção do vasto peso, que a sufocava na vida, se tivesse desprendido e evaporado!

Sempre fora invejosa; com a idade aquele sentimento exagerou e de um modo áspero. Invejava tudo na casa: as sobremesas que os amos comiam, a roupa branca que vestiam. As noites de soirée, de teatro, exasperavam-na. Quando havia passeios projetados, se chovia de repente, que felicidade! O aspeto das senhoras vestidas e de chapéu, olhando por dentro da vidraça com um tédio infeliz, deliciava-a, fazia-a loquaz:

Ai, minha senhora! É um temporal desfeito! É a cântaros; está para todo o dia! Olha o ferro!

E muito curiosa; era fácil encontrá-la, de repente, cosida por detrás de uma porta com a vassoura a prumo, o olhar aguçado. Qualquer carta que vinha era revirada, cheirada... Remexia sutilmente em todas as gavetas abertas; vasculhava em todos os papéis atirados. Tinha um modo de andar ligeiro e surpreendedor. Examinava as visitas. Andava à busca de um segredo, de um bom segredo! Se lhe caía um nas mãos!

Era muito gulosa. Nutria o desejo insatisfeito de comer bem, de petiscos, de sobremesas. Nas casas em que servia ao jantar, o seu olho avermelhado seguia avidamente as porções cortadas à mesa; e qualquer bom apetite que repetia exasperava-a, como uma diminuição da sua parte. De comer sempre os restos

ganhara o ar agudo — o seu cabelo tomara tons secos, cor de rato. Era lambareira: gostava de vinho; em certos dias comprava uma garrafa de oitenta réis, e bebia-a só, fechada, repimpada, com estalos da língua, a orla do vestido um pouco erguida, revendo-se no pé.

E nunca tivera um homem; era virgem. Fora sempre feia, ninguém a tentara; e, por orgulho, por birra, com receio de uma desfeita, não se oferecera, como vira muitas, claramente. O único homem que a olhara com desejo tinha sido um criado de cavalariça, atarracado e imundo, de aspeto facínora; a sua magreza, a sua cuia, o seu ar domingueiro tinham excitado o bruto. Fitava-a com um ar de bitídogue. Causara-lhe horror — mas vaidade. E o primeiro homem por quem ela sentira, um criado bonito e alourado, rira-se dela, pusera-lhe o nome de "Isca Seca. Não contou mais com os homens, por despeito, por desconfiança de si mesma. As rebeliões da natureza, sufocava-as; eram fogachos, flatos. Passavam. Mas faziam-na mais seca; e a falta daquela grande consolação agravava a miséria da sua vida.

Um dia teve, enfim, uma grande esperança. Entrara para o serviço da senhora D. Virgínia Lemos, uma viúva rica, tia de Jorge, muito doente, quase a morrer com um catarro de bexiga. A tia Vitória, a inculcadeira, preveniu-a:

Tu trata a velha, apaparica-a, que ela o que quer é uma enfermeira que a sofra. É rica, não é nada apegada ao dinheiro; é capaz de te deixar uma independência!

Durante um ano Juliana, roída de ambição, foi a enfermeira da velha. Que zelos! Que mimos!

Virgínia era muito rabugenta; a ideia de morrer enfurecia-a; quanto mais ela ralhava com a sua voz gutural, mais Juliana se fazia serviçal. A velha, por fim, estava enternecida, gabava-a às pessoas que a vinham ver, chamava-lhe a sua providência. Tinha-a recomendado muito a Jorge.

Não há outra! Não há outra! — exclamava.

Pois apanhaste — dizia-lhe a tia Vitória. — Pelo menos deixa-te o teu conto de réis.

Um conto de réis! Juliana, de noite, enquanto a velha gemia no seu antigo leito de pau-santo, via o conto de réis à claridade mórbida que dava a lamparina, reluzir em pilhas de ouro inesgotável e prodigioso. Que faria com o dinheiro?

E, à cabeceira da doente com um cobertor pelos ombros, os olhos dilatados e fixos, planeava: poria uma loja de capelista! Vinham-lhe logo lampejos vivos de outras

felicidades: um conto de réis era um dote, poderia casar, teria um homem!

Estavam acabadas as canseiras. ia jantar, enfim, o seu jantar! Mandar, enfim, a sua criada! A sua criada! Via-se a chamá-la, a dizer-lhe, de cima para baixo: Faça, vá, despeje, saia!" — Tinha contrações no estômago, de alegria. Havia de ser boa ama. Mas que lhe andassem direitas! Desmazelos, más respostas,

não havia de sofrer a criadas! — E, impelida por aquelas imaginações, arrastava sutilmente as chinelas pelo quarto, falando só. — Não, desmazelos, não havia de Sofrer! Mantê-las bem, decerto, porque quem trabalha precisa meter para dentro! Mas havia de lho tirar do corpo. Ah! Lá isso, tinham de lhe andar direitas... A velha tinha então um gemido mais aflito.

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