Ah! Outros tempos!
E pôs-se a falar de Colares: a sua primeira ideia, mal chegara, tinha sido tomar uma tipoia e ir lá; queria ir ver a quinta; ainda existiria o balouço debaixo do castanheiro? Ainda haveria o caramanchão de rosinhas brancas, ao pé do Cupido de gesso que tinha uma asa quebrada?. .
Luísa ouvira dizer que a quinta pertencia agora a um brasileiro; sobre a estrada havia um mirante com um teto chinês, ornado de bolas de vidro; e a velha casa morgada fora reconstruída e mobilada pelo Gardé.
—
A nossa pobre sala de bilhar, cor de oca, com grinaldas de rosas! —
disse Basílio; e fitando-a: — Lembraste das nossas partidas de bilhar?
Luísa, um pouco vermelha, torcia os dedos das luvas; ergueu os olhos para ele; disse sorrindo:
—
Éramos duas crianças!
Basílio encolheu tristemente os ombros, fitou as ramagens do tapete; parecia abandonar-se a uma saudade remota, e com uma voz sentida:
—
Foi o bom tempo! Foi o meu bom tempo!
Ela via a sua cabeça bem feita, descaída naquela melancolia das felicidades passadas, com uma risca muito fina, e os cabelos brancos — que lhe dera a separação. Sentia também uma vaga saudade encher-lhe o peito: ergueu-se, foi abrir a outra janela, como para dissipar na luz viva e forte aquela perturbação.
Perguntou-lhe então pelas viagens, por Paris, por Constantinopla.
Fora sempre o seu desejo viajar — dizia —,ir ao Oriente. Quereria andar em caravanas, balouçada no dorso dos camelos; e não teria medo, nem do deserto, nem das feras. .
—
Estás muito valente! — disse Basílio. — Tu eras uma maricas, tinhas medo de tudo. . Até da adega, na casa do papá, em Almada!
Ela corou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterrânea que dava arrepios! A candeia de azeite pendurada na parede iluminava com uma luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de teias de aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia ali às vezes, pelos cantos, beijos furtados. .
Quis saber então o que tinha feito em Jerusalém; se era bonito.
Era curioso. Ia pela manhã um bocado ao Santo Sepulcro; depois do almoço montava a cavalo... Não se estava mal no hotel; inglesas bonitas. . Tinha algumas intimidades ilustres. .
Falava delas, devagar, traçando a perna; o seu amigo, o patriarca de Jerusalém, a sua velha amiga, a Princesa de La Tour d'Auvergne! Mas o melhor do dia era de tarde — dizia — no Jardim das Oliveiras, vendo em frente as muralhas do Templo de Salomão, ao pé a aldeia escura de Betânia onde Marta fiava aos pés de Jesus, e mais longe, faiscando imóvel sob o sol, o Mar Morto! E ali passava sentado num banco, fumando tranquilamente o seu cachimbo!
Se tinha corrido perigos?
Decerto. Uma tempestade de areia no deserto de Petra! Horrível! Mas que linda viagem, as caravanas, os acampamentos! Descreveu a sua toilete, uma manta de pele de camelo às listras vermelhas e pretas, um punhal de Damasco numa cinta de Bagdá, e a lança comprida dos beduínos.
—
Devia-te ficar bem!
—
Muito bem. Tenho fotografias.
Prometeu dar-lhe uma, e acrescentou:
—
Sabes que te trago presentes?
—
Trazes? — E os seus olhos brilhavam.
O melhor era um rosário. .
—
Um rosário?
—
Uma relíquia! Foi benzido primeiro pelo patriarca de Jerusalém sobre o túmulo de Cristo, depois pelo papa. .
Ah! Porque tinha estado com o papa! Um velhinho muito asseado, já todo branquinho, vestido de branco, muito amável!
—
Tu dantes não eras muito devota — disse.
—
Não, não sou muito caturra nessas coisas — respondeu rindo.
—
Lembras-te da capela da nossa casa em Almada?
Tinham passado ali lindas tardes! Ao pé da velha capela morgada havia um adro todo cheio de altas ervas floridas — e as papoulas, quando vinha a aragem, agitavam-se como asas vermelhas de borboletas pousadas. .
—
E a tília, lembras-te, onde eu fazia ginástica?
—
Não falemos no que lá vai!
Em que queria ela então que ele falasse? Era a sua mocidade, o melhor que tivera na vida. .