Era um horror de rua! Pequena, estreita, acavalados uns nos outros! Uma vizinhança a postos, ávida de mexericos! Qualquer bagatela, o trotar de uma tipoia, e aparecia por trás de cada vidro um par de olhos repolhudos a cocar!
E era logo um badalar de línguas por aí abaixo, e conciliábulos, e opiniões formadas, e fulano é indecente e fulana é bêbada...
—
É o diabo! — disse Sebastião.
—
A Luísa é um anjo, coitada — dizia Jorge passeando pela saleta —, mas tem coisas em que é criança! Não vê o mal. É muito boa, deixa-se ir. Com este caso da Leopoldina, por exemplo: foram criadas de pequenas, eram amigas, não tem coragem agora para a pôr fora! É acanhamento, é bondade. Ele compreende-se! Mas enfim as leis da vida têm as suas exigências!. .
E depois de uma pausa:
—
Por isso, Sebastião, enquanto eu estiver fora, se te constar que a Leopoldina vem por cá, avisa a Luísa! Porque ela é assim, esquece-se, não reflexiona. É necessário alguém que a advirta, que lhe diga: "Alto lá, isso não
pode ser!" Que então cai logo em si, e é a primeira!.. Vens por aí, fazes-lhe companhia, fazes-lhe música, e se vires que a Leopoldina aparece ao largo, tu logo: "Minha rica senhora, cuidado, olhe que isso não!" Que ela, sentindo-se apoiada, tem decisão. Se não, acanha-se, deixa-a vir. Sofre com isso, mas não tem coragem de lhe dizer: "Não te quero ver, vai-te!" Não tem coragem para nada; começam as mãos a tremer-lhe, a secar-se-lhe a boca. . É mulher, é muito mulher.. Não te esqueças, hem, Sebastião?
—
Então havia de me esquecer, homem?
Sentiram então o piano na sala e a voz de Luísa ergueu-se, fresca e clara, cantando a Mandolinata:
Amici, la notte è bella,
La luna va spuntare.
—
Fica tão só, coitada!. . — disse Jorge.
Deu alguns passos pelo escritório, fumando, com a cabeça baixa:
—
Todo o casal bem organizado, Sebastião, deve ter dois filhos! Deve ter pelo menos um!. .
Sebastião coçou a barba em silêncio — e a voz de Luísa, elevando-se com certo esforço áspero, nos altos da melodia:
Di cà, di là per la città
Andiamo a transnottare. .
Era uma tristeza secreta de Jorge — não ter um filho! Desejava-o tanto! Ainda em solteiro, nas vésperas do casamento, lá sonhava aquela felicidade: o seu filho! Via-o de muitas maneiras: ou gatinhando com as suas perninhas vermelhas, cheias de roscas, e os cabelos anelados, finos como fios de seda; ou rapaz forte, entrando da escola com os livros, alegre e de olho vivo, vindo mostrar-lhe as boas notas dos mestres; ou, melhor, rapariga crescida, clara e rosada, com um vestido branco, as duas tranças caídas, vindo pousar as mãos nos seus cabelos já grisalhos..
Vinha-lhe, às vezes, um medo de morrer sem ter tido aquela felicidade completadora!
Agora, na sala, a voz aguda de Ernestinho perorava; depois, no piano, Luísa recomeçou a Mandolinata, com um brio jovial.
A porta do escritório abriu-se, Julião entrou:
—
Que estão vocês aqui a conspirar? Vou-me safar, que é tarde! Até à volta, meu velho, hem? Também ia contigo tomar ar, respirar, ver campos, mas. .
E sorriu com amargura. — Addio! Addio!
Jorge foi iluminar-lhe ao patamar, abraçá-lo outra vez. Se quisesse alguma coisa do Alentejo. .
Julião carregou o chapéu na cabeça:
—
Dá cá outro charuto, por despedida! Dá cá dois!
—
Leva a caixa! Eu em viagem só fumo cachimbo. Leva a caixa, homem!
Embrulhou-lha num Diário de Notícias; Julião meteu-a debaixo do braço, e descendo os degraus:
—
Cuidado com as sezões, e descobre uma mina de ouro!
Jorge e Sebastião entraram na sala. Ernestinho, encostado ao piano, torcia as guias do bigodinho, e Luísa começava uma valsa de Strauss — o Danúbio azul.