"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » ,,O Primo Basílio'' - de Eça de Queirós

Add to favorite ,,O Primo Basílio'' - de Eça de Queirós

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

Basílio imediatamente apossou-se da cadeira ao pé de Luísa — e vendo D.

Felicidade a olhar distraída:

Estive para te ir ver de manhã — disse baixinho a Luísa.

Ela ergueu a voz, muito naturalmente, com indiferença:

E porque não foste? Tínhamos feito música. Fizeste mal. Devias ter ido. .

D. Felicidade quis então saber as horas. Começava a enfastiar-se. Tinha esperado encontrar o Conselheiro; por ele, para lhe parecer bem, fizera o sacrifício de se apertar!

Acácio não vinha, os gases começavam a afrontá-la; e o despeito daquela ausência aumentava-lhe a tortura da digestão. Na sua cadeira, o corpo mole, ia seguindo a multidão que girava incessantemente, numa névoa empoeirada.

Mas a música, no coreto, bateu de repente, alto, a grande ruído de cobres, os primeiros compassos impulsivos da marcha do Fausto. Aquilo reanimou-a.

Era pot-pourri da ópera — e não havia música de que gostasse mais. Estaria para a abertura de São Carlos, o Sr. Basílio?

Basílio disse, com uma intenção, voltando-se para Luísa:

Não sei, minha senhora, depende. .

Luísa olhava, calada. A multidão crescera. Nas ruas laterais mais espaçosas, frescas, passeavam apenas, sob a penumbra das árvores, os acanhados, as pessoas de luto, os que tinham o fato coçado. Toda a burguesia domingueira viera amontoar-se na rua do meio, no corredor formado pelas filas cerradas das cadeiras do asilo; e ali se movia entalada, com a lentidão espessa de uma massa derretida, arrastando os pés, raspando o macadame, num amarfanhamento a garganta seca, os braços moles, a palavra rara. Iam, vinham, incessantemente para cima e para baixo, com um bamboleamento relaxado e um rumor grosso sem alegria e sem bonomia, no arrebanhamento passivo que agrada às raças mandrionas; no meio da abundância das luzes e das festividades da música, um tédio morno circulava, penetrava como uma névoa; a poeirada fina envolvia as figuras, dava-lhes um tom neutro; e nos rostos que passavam sob os candeeiros, nas zonas mais diretas de luz, viam-se desconsolações de fadiga e aborrecimento de dia santo.

Decara as casas da Rua Ocidental tinham na sua fachada o reflexo claro das luzes do Passeio; algumas janelas estavam abertas, as cortinas de fazenda escuras destacavam sobre a claridade interior dos candeeiros. Luísa sentia como uma saudade de outras noites de verão, de serões recolhidos. Onde?

Não se lembrava. O movimento então retraía-a; e encontrava em face, fitando-a numa atitude lúgubre, o sujeito de pêra longa. Debaixo do véu sentia a poeira arder-lhe nos olhos; em redor dela gente bocejava.

D. Felicidade propôs uma volta. Levantaram-se, foram rompendo devagar; as filas das cadeiras apertavam-se compactamente, e uma infinidade de faces a que a luz do gás dava o mesmo tom amarelado olhavam de um modo fixo e cansado, num abatimento de pasmaceira. Aquele aspeto irritou Basílio, e como era difícil andar lembrou — "que se fossem daquela sensaboria".

Saíram. Enquanto ele ia comprar os bilhetes, D. Felicidade, deixando-se quase cair num banco sob a folhagem de um chorão, exclamou aflita:

Ai, filha! Estou que arrebento!

Passava a mão no estômago; tinha a face envelhecida.

E o Conselheiro, que me dizes? Olha que já é pouca sorte! Hoje que eu vim ao Passeio. .

Suspirou, abanando-se. E com o seu sorriso bondoso:

É muito simpático, teu primo! E que maneiras! Um verdadeiro fidalgo.

Que eles conhecem-se, filha!

Declarou-se muito fatigada, apenas saíram o portão. Era melhor tomarem um trem.

Basílio achava preferível subirem a pé até ao Largo do Loreto. A noite estava tão agradável! E o andar fazia bem à senhora D. Felicidade!

Depois diante do Martinho, falou em irem tomar neve; mas D. Felicidade receava a frialdade; Luísa tinha vergonha. Pelas portas do café abertas, viam-se sobre as mesas jornais enxovalhados; e algum raro indivíduo, de calça branca, tomava placidamente o seu sorvete de morango.

No Rossio, sob as árvores, passeava-se; pelos bancos, gente imóvel parecia dormitar; aqui e além pontas de cigarro reluziam; sujeitos passavam, com o chapéu na mão, abanando-se, o colete desabotoado; a cada canto se apregoava água fresca "do Arsenal"; em torno do largo, carruagens descobertas rodavam vagarosamente. O céu abafava — e na noite escura, a coluna da estátua de D.

Pedro tinha o tom baço e pálido de uma vela de estearina colossal e apagada.

Basílio, ao pé de Luísa, ia calado. "Que horror de cidade!" — pensava. —

"Que tristeza!" E lembrava-lhe Paris, de verão; subia, à noite, no seu faéton, os Campos Elísios devagar; centenares de vitórias descem, sobem rapidamente, com um trote discreto e alegre; e as lanternas fazem em toda a avenida um movimento jovial de pontos de luz; vultos brancos e mimosos de

mulheres reclinam-se nas almofadas, balançadas nas molas macias; o ar em redor tem uma doçura aveludada, e os castanheiros espalham um aroma subtil. Dos dois lados, dentre os árvoredos, saltam as claridades violentas dos cafés cantantes, cheios do bruaá das multidões alegres, dos brios impulsivos das orquestras, os restaurantes flamejam; há uma intensidade de vida amorosa e feliz; e, para além, sai das janelas dos palacetes, através dos estores de seda, a luz sóbria e velada das existências ricas. Ah! Se lá estivesse! — Mas ao passar junto dos candeeiros olhava de lado para Luísa; o seu perfil fino sob o véu branco tinha uma grande doçura; o vestido prendia bem a curva do seu peito; e havia no seu andar uma lassidão que lhe quebrava a linha da cinta de um modo lânguido e prometedor.

Veio-lhe uma certa ideia, começou a dizer: Que pena que não houvesse em toda a Lisboa um restaurante, onde se pudesse ir tomar uma asa de perdiz e beber uma garrafa de champanhe frappe!

Luísa não respondeu. Devia ser delicioso — pensava. — Mas D. Felicidade exclamou:

Perdiz, a esta hora!

Perdiz ou outra qualquer coisa.

Fosse o que fosse, era para estourar! Credo!

Subiam pela Rua Nova do Carmo. Os candeeiros davam uma luz mortiça; as altas casas dos dois lados, apagadas, entalavam, carregavam a sombra; e a patrulha muito armada, descia passo a passo, sem ruído, sinistra e subtil.

Ao Chiado um garoto de barrete azul perseguiu-os com cautelas de loteria; a sua voz aguda e chorosa prometia a fortuna, muitos contos de réis. D.

Felicidade ainda parou, com uma tentação. . Mas uma troça de rapazes bêbedos que descia de chapéu na nuca, falando alto, aos tropeções, assustou muito as duas. Luísa encolheu-se logo contra Basílio; D. Felicidade enfiada agarrou-lhe ansiosamente o braço, quis-se meter numa carruagem; e até ao Loreto foi explicando o seu medo aos borrachos, com a voz atarantada, contando casos, facadas, sem largar o braço de Basílio. Da fileira de tipoias, ao lado das grades da Praça de Camões, um cocheiro lançou logo a sua caleche descoberta, de pé na almofada apanhando confusamente as rédeas, com grandes chicotadas na parelha, excitado, gritando:

Pronto, meu amo, pronto!

Demoraram-se um momento ainda conversando. Um homem então passou, rondou — e Luísa desesperada reconheceu os olhos acarneirados do sujeito da pêra.

Entraram para a caleche. Luísa ainda se voltou para ver Basílio imóvel no largo, com o seu chapéu na mão; depois acomodou-se, pôs os pezinhos no outro assento e balançada pelo trote largo viu passar, calada, as casas apagadas

Are sens