"É agora!" — pensava. — "Morre!"
E o seu olhar ansioso ia logo para a gaveta da cómoda, onde estava decerto os papéis. Mas não! A velha queria beber, ou voltar-se. .
—
Como se sente? — perguntava Juliana, com uma voz plangente.
Melhor, Juliana, melhor — murmurava.
Supunha-se sempre melhor.
—
Mas a senhora tem estado desinquieta! — dizia Juliana, despeitada da melhora.
—
Não — suspirava — dormi bem!
—
Isso não tem dormido.. Tenho-a ouvido gemer! Tem estado toda a noite a gemer!
Queria argumentar com ela, convencê-la que estava pior! Convencer-se a si mesma que o alívio era efémero, que ia morrer depressa! E todas as manhãs seguia o Dr. Pinto até à porta, com os braços cruzados, a face triste:
—
Então, senhor doutor, não há esperança?
—
Está por dias!
Queria saber os dias: dois? cinco?
—
Sim, Sra. Juliana — dizia o velho, calçando as suas luvas pretas — uns dias, sete, oito.
—
Oito dias!
E como a felicidade se aproximava, já tinha de olho três pares de botinas que vira na vidraça do Manuel Lourenço!
A velha, enfim, morreu. Nem a mencionava no testamento!
Veio-lhe uma febre. Jorge, agradecido pelos cuidados dela com a tia Virgínia, pagou-lhe um quarto no hospital, e prometeu tomá-la para criada de dentro. A que tinha, uma Emília muito bonita, ia casar.
Quando saiu do hospital para casa de Jorge, começava a queixar-se mais do coração. Vinha desiludida de tudo; tinha às vezes vontade de morrer. Ouviam-se todo o dia pela casa os seus ais. Luísa achava-a fúnebre.
Quis despedi-la ao fim de duas semanas, Jorge não consentiu; estava em dívida com ela, dizia. Mas Luísa não podia disfarçar a sua antipatia; — e Juliana começou a detestá-la; pôs-lhe logo um nome: a "Piorrinha"! Depois, dai a semanas, viu vir os estofadores; renovava-se a mobília da sala! A tia
Virgínia deixara três contos de réis a Jorge — e ela, ela que durante um ano fora a enfermeira, humilde como um cão e fixa como uma sombra, aturando o mostrengo, tinha em paga ido para o hospital, com uma febre, das noitadas, das canseiras! Julgava-se vagamente roubada. Começou a odiar a casa.
Tinha para isso muitas razões, dizia: dormia num cubículo abafado; ao jantar não lhe davam vinho, nem sobremesa; o serviço dos engomados era pesado; Jorge e Luísa tomavam banho todos os dias, e era um trabalhão encher, despejar todas as manhãs as largas bacias de folha; achava despropositada aquela mania de se porem a chafurdar todos os dias que Deus deitava ao mundo; tinha servido vinte amos e nunca vira semelhante despropósito! A única vantagem — dizia ela à tia Vitória — era não haver pequenos; tinha horror a crianças! Além disso achava que o bairro era saudável; e como tinha a cozinheira "na mão", não é verdade? havia aquele regalo dos caldinhos, de algum prato melhor de vez em quando! Por isso ficava; se não, não era ela!
Fazia no entanto o seu serviço; ninguém tinha nada que lhe dizer. O olho aberto sempre e o ouvido à escuta, já se vê! E como perdera a esperança de se estabelecer, não se sujeitava ao rigor de economizar; por isso ia-se consolando com algumas pinguinhas, de vez em quando; e satisfazia o seu vício — trazer o catita. O pé era o seu orgulho, a sua mania, a sua despesa. Tinha-o bonito e pequenino.
— Como poucos — dizia ela —, não vai outro ao Passeio!
E apertava-o, aperreava-o; trazia os vestidos curtos, lançava-o muito para fora.
A sua alegria era ir aos domingos para o Passeio Público, e ali, com a orla do vestido erguida, a cara sob o guarda-solinho de seda, estar a tarde inteira na poeira, no calor, imóvel, feliz — a mostrar, a expor o pé!
CAPÍTULO IV
Pelas três horas da tarde, Juliana entrou na cozinha e atirou-se para uma cadeira, derreada. Não se tinha nas pernas de debilidade! Desde as duas horas que andava a arrumar a sala! Estava um chiqueiro. O peralta na véspera até deixara cinza de tabaco por cima das mesas! A negra é que as pagava. E que calor! Era de derreter! Uf!
—
O caldinho há de estar pronto, hem! — disse, adocicando a voz. —
Tira-mo, Sra. Joana, faz favor?
—
Vossemecê hoje está com outra cara — notou a cozinheira.