—
Ai! Sinto-me outra, Sra. Joana! Pois olhe que adormeci com dia, já luzia o dia!
—
E eu! — Tinha tido cada sonho! Credo! Uma avantesma cor de fogo a passear-lhe por cima do corpo, e cada pancada na boca do estômago, como quem pisava uvas num lagar!
—
Enfartamento — disse sentenciosamente Juliana, e repetiu:
—
Pois eu sinto-me outra. Há meses que me não sinto tão bem!
Sorri com os seus dentes amarelados. O caldo que Joana deitava na malga branca com um vapor cheiroso, cheio de hortaliça dava-lhe uma alegria
gulosa. Estendeu os pés, recostou-se, feliz, na boa sensação da tarde quente e luminosa, entrando largamente pelas duas janelas abertas.
O sol retirara-se da varanda, e sobre a pedra, em vasos de barro, plantas pobres encolhiam a sua folhagem chupada do calor; sobre uma tábua a um canto, numa velha panela bojuda, verdejava um pé de salsa muito tratado; o gato dormia sobre um esteirão; esfregões secavam numa corda; e para além alargava-se o azul vivo como um metal candente, as árvores dos quintais tinham tons ardentes do sol, os telhados pardos com as suas vegetações esguias coziam no
calor e pedaços de paredes caiadas despediam uma rebrilhação dura.
—
Está de apetite, Sra. Joana, está de apetite! — dizia Juliana, remexendo o caldo devagarinho, com gula. A cozinheira de pé, com os braços cruzados sobre o seu peito abundante, regozijava-se:
—
O que se quer é que esteja a gosto.
—
Está a preceito.
Sorriam, contentes da intimidade, das boas palavras. — E a campainha da porta que já tinha tocado, tornou a tilintar discretamente.
Juliana não se mexeu. Bafos de aragem quente entravam; ouvia-se ferver a panela no fogão, e fora o martelar incessante da forja; às vezes o arrulhar triste
de duas rolas que viviam na varanda, numa gaiola de vime, punha na tarde abrasada uma sensação de suavidade.
A campainha retilintou, sacudida com impaciência.
—
Com a cabeça, burro! — disse Juliana.
Riram. Joana fora sentar-se à janela, numa cadeira baixa; estendia os seus grossos pés, calçados de chinelas de ourelo; coçava-se devagarinho, no sovaco, toda repousada.
A campainha retiniu violentamente.
—
Fora, besta! — rosnou Juliana, muito tranquila. Mas a voz irritada de Luísa chamou debaixo:
—
Juliana!
—
Que nem uma pessoa pode tomar a sustância sossegada! Raio de casa!
Irra!
—
Juliana! — gritou Luísa.
A cozinheira voltou-se, já assustada:
—
A senhora zanga-se, Sra. Juliana.
—
Que a leve o diabo!