—
Vossemecê também, Sra. Joana, deixa-se cardar pelo homem!
Joana sorriu.
—
Ainda que eu tivesse de roer ossos, Sra. Juliana, a última migalha havia de ser para ele!
Juliana teve um risinho seco, e com a voz arrastada:
—
Vale lá a pena!
Mas invejava asperamente a cozinheira pela posse daquele amor, pelas suas delícias. Repetiu, contrafeita:
—
Vale lá a pena! Perfeito rapaz — continuou — o que veio hoje ver a senhora! Melhor que o homem!
E depois de uma pausa:
—
Então esteve mais de duas horas?
—
Tinha saído quando vossemecê entrou.
Mas o candeeiro de petróleo apagava-se, com um cheiro fétido e uma fumarada negra.
—
Boa noite, Sra. Joana. Ainda vou rezar a minha coroa.
—
Ó Sra. Juliana! — disse a outra de entre os lençóis. — Se vossemecê quer ~ três salve-rainhas pela saúde do meu rapaz que tem estado adoentado, eu cá lhe rezava três pelas melhoras do peito.
—
Pois sim, Sra. Joana!
Mas refletindo:
—
Olhe. Eu do peito vou melhor; dê-mas antes para alívio das dores de cabeça. A Santa Engrácia!
—
Como vossemecê quiser, Sra. Juliana.
—
Se faz favor. Boa noite! Fica-lhe aí um cheiro! Credo!
Foi para o quarto. Rezou, apagou a luz. Um calor mole e contínuo caía do forro; começou a faltar-lhe o ar; tornou a abrir o postigo, mas o bafo quente que vinha dos telhados enjoava-a: e era assim todas as noites, desde o começo do estio! Depois as madeiras velhas fervilhavam de bicharia! Nunca, nunca, nas casas que servira, tinha tido um quarto pior. Nunca!
A cozinheira começou a ressonar ao lado. E acordada, às voltas, com aflições no coração, Juliana sentia a vida pesar-lhe, com uma amargura maior!
Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana coiceiro Tavira. A sua mãe fora engomadeira; e desde pequena tinha conhecido em casa um sujeito, a quem chamavam na vizinhança — o "Fidalgo", a quem sua mãe chamava — o senhor D. Augusto. Vinha todos os dias, de tarde no verão, no inverno de manhã, para a saleta onde sua mãe engomava, e ali estava horas sentado no poial da janela que dava para um quintal e, fumando cachimbo, cofiando em silêncio um enorme bigode preto. Como o poial era de pedra, punha-lhe em cima, com muito método, uma almofada de vento, que ele mesmo soprava.
Era calvo, e trazia ordinariamente uma quinzena de veludo castanho e chapéu alto branco. Às seis horas levantava-se, esvaziava a almofada, estava um bocado a esticar as calças para cima, e saía, com a sua grossa bengala de cana-da-índia debaixo do braço, gingando da cinta. Ela e a sua mãe iam então jantar na mesinha de pinho da cozinha debaixo de um postigo, diante do qual se
balouçavam, de verão e de inverno, galhos magros de uma árvore triste.
À noite o senhor D. Augusto voltava; trazia sempre um jornal; sua mãe fazia-lhe chá e torradas, servia-o, toda enlevada nele. Muitas vezes Juliana a vira chorar de ciúmes.
Um dia uma vizinha má, a quem ela não quisera ajudar a lavar a roupa, enfureceu-se, e atirando-lhe injúrias dos degraus da porta — gritou-lhe que a sua mãe era uma desavergonhada, e que o seu pai estava na África por ter morto o Rei de Copos!
Pouco tempo depois foi servir. A sua mãe morreu daí a meses, com uma doença de útero. Juliana só uma vez tornou a ver o senhor D. Augusto —
uma tarde, com uma opa roxa, lúgubre, na procissão de Passos!
Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde!. . Era demais! Tinha agora dias em que só de ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca se acostumara a servir. Desde rapariga a sua ambição fora ter um negociozito, uma tabacaria, uma loja de capelista ou de quinquilharias, dispor, governar, ser patroa; mas, apesar de economias