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alma como bafos de uma noite elétrica. E quando Basílio saiu, ficou sentada, quebrada, como depois de um excesso.

Sebastião tinha estado nos últimos três dias em Almada, na Quinta do onde trazia obras.

Voltara na segunda-feira cedo, e, pelas dez horas, sentado no poial da janela de jantar que abria para o terraçozinho, esperava o seu almoço, brincando com o Rolim — o seu gato, amigo e confidente da ilustre Vicência, nédio como um prelado, ingrato como um tirano.

A manhã começava a aquecer; o quintal estava já cheio de sol; na água do tanque, sob a parreira, claridades espelhadas e trémulas faiscavam. Nas duas gaiolas os canários cantavam estridentemente.

A tia Joana, que andava a arranjar a mesa do almoço muito calada, pôs-se então a dizer com a sua vozinha arrastada e minhota:

Ora, esteve aí ontem a Gertrudes, a do doutor, com uns palratórios, com umas tontices!. .

A respeito de quê, tia Joana? — perguntou Sebastião.

A respeito de um rapaz, que diz que vai agora todos os dias à casa da Luisinha.

Sebastião ergueu-se logo:

Que disse ela, tia Joana?

A velha assentava a toalha devagar com a sua mão gorducha espalmada:

Esteve ai a palrar. Quem seria, quem não seria? Diz que é um perfeito rapaz. Vem todos os dias. Vem de trem, vai de trem. . No sábado, que estivera até quase à noitinha. E cantou-se na sala, diz que uma voz que nem no teatro..

Sebastião interrompeu-a, impaciente:

É o primo, tia Joana. Então quem havia de ser? É o primo que chegou do Brasil.

A tia Joana teve um bom sorriso.

Eu logo vi que era coisa de parente. Pois diz que é um perfeito rapaz! E

todo janota!

E saindo para a cozinha, devagar:

Eu logo vi que era parente, logo disse!. .

Sebastião almoçou inquieto. Positivamente a vizinhança já se punha a mexericar, a comentar! Estava-se a armar um escândalo! — E, assustado, decidiu-se logo a ir consultar Julião.

Descia a Rua de São Roque para casa dele, quando o viu, que subia devagar pela sombra, com um rolo de papel debaixo do braço, uma calça branca enxovalhada, o ar suado.

Ia a tua casa, homem! — disse Sebastião logo.

Julião estranhou a excitação desusada da sua voz.

Havia alguma novidade? Que era?

Uma do diabo! — exclamou, baixo, Sebastião.

Estavam parados ao pé da confeitaria. Na vidraça, por trás deles, emprateleirava-se uma exposição de garrafas de malvasia com os seus letreiros muito coloridos, transparências avermelhadas de gelatinas, amarelidões enjoativas de doces de ovos, e queques de um castanho-escuro tendo espetados cravos tristes de papel branco ou cor-de-rosa. Velhas natas lívidas amolentavam-se no oco dos folhados; ladrilhos grossos de marmelada esbeiçavam-se ao calor; as empadinhas de marisco aglomeravam as suas crostas ressequidas. E no centro, muito proeminente numa travessa, enroscava-se uma lampreia de ovos medonha e bojuda, com o ventre de um amarelo ascoroso, o dorso malhado de arabescos de açúcar, a boca escancarada; na sua cabeça grossa esbugalhavam-se dois horríveis olhos de chocolates; os seus dentes de amêndoa ferravam-se numa tangerina de chila; e em torno do monstro espapado moscas esvoaçavam.

Vamos ali para o café — disse Julião. — Aqui na rua arde-se!

Tenho estado apoquentado — ia dizendo Sebastião. — Muito apoquentado! Quero falar-te.

No café o papel azul-ferrete e as meias portas fechadas abatiam a áspera intensidade da luz, davam uma frescura calada.

Foram-se sentar ao fundo. Do outro lado da rua as fachadas muito caiadas brilhavam com uma radiação faiscante. Por trás do balcão, onde reluziam garrafas de cristal, um criado de jaquetão, estremunhado e esguedelhado, cabeceava de sono. Um pássaro chilreava dentro; sentia-se o bater espaçado das bolas do bilhar através de uma porta de baeta verde; às vezes o pregão de um cangalheiro na rua sobressaia, e — todos estes sons, por momentos se perdiam no ruído forte do descer de um trem travado.

Decara deles um sujeito de ar debochado lia um jornal; as suas melenas grisalhas colavam-se a um crânio amarelado; o bigode tinha tons queimados do cigarro; e das noitadas ficara-lhe uma vermelhidão inflamada nas pálpebras.

De vez em quando erguia preguiçosamente a cabeça, atirava para o chão areado um jato escuro de saliva, dava uma sacudidela triste ao jornal e tornava a fitá-lo com ar infeliz. Quando os dois entraram e pediram carapinhadas, abaixou-lhes gravemente a cabeça.

Mas o que é então? — perguntou logo Julião. Sebastião chegou-se mais para ele:

É por causa lá da nossa gente. Por causa do primo — disse baixo.

E acrescentou:

Tu viste-lo, hem?

Are sens