—
Já temos falatório! — foi pensando Sebastião.
E entrou em casa, descontente.
Morava ao fundo da rua, num prédio seu, de construção antiga, com quintal.
Sebastião era só. Tinha uma fortuna pequena em inscrições, terras de lavoura para o lado de Seixal, e a quinta em Almada — o Rozegal. As duas criadas eram muito antigas na casa. A
Vicência, a cozinheira, era uma preta de São Tomé já do tempo da mamã. A tia Joana, a governanta, servia-o havia trinta e cinco anos; chamava ainda a Sebastião o "menino"; tinha já as tontices de uma criança, e recebia sempre os respeitos de uma avó. Era do Porto, do Poârto, como ela dizia, porque nunca perdera o seu acento minhoto. Os amigos de Sebastião chamavam-lhe uma velha de comédia. Era baixinha e gorda, com um sorriso muito bondoso; tinha os cabelos alvos como uma estriga, atados no alto num rolinho com um
antigo pente de tartaruga; trazia sempre um vasto lenço branco muito asseado, traçado sobre o peito. E todo o dia passarinhava pela casa, com o seu passinho arrastado, fazendo tilintar os molhos de chaves, resmungando provérbios, tomando rapé de uma caixa redonda, em cuja tampa se lascava o desenho abonecado da ponte pênsil do Porto.
Em toda a casa havia um tom caturra e doce; na sala de visitas, quase sempre fechada, o vasto canapé, as poltronas tinham o ar empertigado do tempo do senhor D. José I, e os estofos de damasco vermelho desbotado lembravam a pompa de uma corte decrépita; das paredes da casa de jantar pendiam as primeiras gravuras das batalhas de Napoleão, onde se vê invariavelmente, numa eminência, o cavalo branco, para o qual galopa desenfreadamente do primeiro plano um hussardo, brandindo um sabre. Sebastião dormia os seus sonos de sete horas, sem sonhos, numa velha barra de pau preto torneado; e numa saleta escura, sobre uma cómoda de fecharias de metal amarelo, conservava-se, havia anos, o padroeiro da casa, São Sebastião — que se torcia, cravado de setas, nas cordas que o atavam ao tronco, à luz de uma lâmpada, muito cuidada pela tia Joana, sob os ruídos subtis dos ratos pelo forro.
A casa condizia com o dono. Sebastião tinha um génio antiquado. Era solitário e acanhado. Já no Latim lhe chamavam o "Peludo"; punham-lhe rabos, roubavam-lhe impudentemente as merendas. Sebastião, que tinha a força de um ginasta, oferecia a resignação de um mártir.
Foi sempre reprovado nos primeiros exames do liceu. Era inteligente, mas uma pergunta, o reluzir dos óculos de um professor, a grande lousa negra imobilizavam-no; ficava muito embezerrado, a face inchada e rubra, a coçar os joelhos, o olhar vazio.
Sua mãe, que era da aldeia e que fora padeira, muito vaidosa agora das suas inscrições, da sua quinta, da sua mobília de damasco, sempre vestida de seda, carregada de anéis, costumava dizer:
—
Ora! Tem que comer e beber! Estar a afligir a criança com estudos!
deixa lá!
A inclinação de Sebastião era pela música. A sua mãe, por conselhos da mãe de Jorge, sua vizinha e a sua íntima, tomou-lhe um mestre de piano; logo desde as primeiras lições, a que ela assistia com enfeites de veludo vermelho e cheia de joias, o velho professor Aquiles Bentes, de óculos redondos e cara de coruja, excitado com a sua voz nasal:
—
Minha rica senhora! O seu menino é um génio! É um génio! Há de ser um Rossini! É puxar por ele! É puxar por ele!
Mas era justamente o que ela não queria, era puxar por ele, coitadinho! Por isso não foi um Rossini. E todavia o velho Bentes continuava a dizer, por hábito:
—
Há de ser um Rossini! Há de ser um Rossini!
Somente em lugar de o gritar, brandindo papéis de música, murmurava-o, os enormes de leão enfastiado.
Já então os dois rapazes vizinhos, Jorge e Sebastião, eram íntimos. Jorge mais inventivo, dominava-o. No quintal, a brincar, Sebastião era sempre nas imitações da diligência, o vencido nas guerras. Era Sebastião que carregava os pesos, que oferecia o dorso para Jorge trepar; nas merendas comia igual, deixava a Jorge toda a fruta. Cresceram. E aquela amizade sempre amuos, tornou-se na vida de ambos um interesse essencial e permanente.
Quando a mãe de Jorge morreu, pensaram mesmo em viver juntos; habitariam a casa de Sebastião, mais larga e que tinha quintal; Jorge queria comprar um cavalo, mas conheceu Luísa no Passeio, e daí a dois meses passava quase todo o seu dia na Rua da Madalena.
Todo aquele plano jovial da Sociedade Sebastião e Jorge — chamavam-lhe assim, rindo — desabou, como um castelo de cartas. Sebastião teve um grande pesar.
E era ele, depois, que fornecia os ramos de rosas que Jorge levava a Luísa, sem espinhos, com cuidados devotos, embrulhados num papel de seda. Era ele que tratava dos arranjos do "ninho", ia apressar os estofadores, discutir preços de roupas, vigiar o trabalho dos homens que pregavam os tapetes, conferenciar com a inculcadeira, cuidar dos papéis do casamento!
E à noite, fatigado como um procurador zeloso, tinha ainda de escutar com as expansões felizes de Jorge, que passeava pelo quarto até às duas horas da noite, em mangas de camisa, namorado, loquaz, brandindo o cachimbo!
Depois do casamento Sebastião sentiu-se muito só. Foi a Portel visitar um Velho esquisito, com um olhar de doido, que passava a existência combinando enxertos no pomar, e lendo, relendo o Eurico. Quando voltou, passado um mês, Jorge disse-lhe radioso:
—
E sabes, hem? Isto agora é que é a tua casa! Aqui é que tu vives!
Mas nunca obteve de Sebastião que fosse a sua casa com uma inteira intimidade. Sebastião batia à porta, timidamente. Corava diante de Luísa; o antigo "Peludo" de Latim reaparecia. Jorge lutara para que ele cruzasse sem cerimónia as pernas, fumasse cachimbo diante dela, não lhe dissesse a todo o momento: — "Vossa Excelência" — meio erguido na cadeira.
Nunca vinha jantar senão arrastado. Quando Jorge não estava, as suas visitas eram curtas, cheias de silêncio. Julgava-se gebo, tinha medo de maçar.
Nessa tarde, quando ele foi para a sala de jantar, a tia Joana veio-lhe perguntar pela Luisinha.
Adorava-a, achava-a um anjinho, uma açucena.
—
Como está ela? Viu-a?
Sebastião corou; não quis dizer, como na véspera, que estava gente, que não tinha entrado; e abaixando-se, pondo-se a brincar com as orelhas do Trajano, o seu velho perdigueiro:
—
Está boa, tia Joana, está boa. Então como há de estar? Está ótima!
Àquela hora Luísa recebia uma carta de Jorge. Era de Portel, com muitas queixas sobre o calor, sobre as más estalagens, histórias sobre o extraordinário parente de Sebastião — saudades e mil beijos. .
Não a esperava, e aquela folha de papel cheia de uma letra miudinha, que lhe fazia reaparecer vivamente Jorge, a sua figura, o seu olhar, a sua ternura, deu-lhe uma sensação quase dolorosa. Toda a vergonha dos seus desfalecimentos cobardes, sob os beijos de Basílio, veio abrasar-lhe as faces. Que horror deixar-se abraçar, apertar! No sofá o que ele lhe dissera; com que olhos a devorara!. . Recordava tudo — a sua atitude, o calor das suas mãos, a tremura da sua voz. . E maquinalmente, pouco e pouco, ia-se esquecendo naquelas recordações, abandonando-se-lhes, até ficar perdida na deliciosa lassidão que elas lhe davam, com o olhar lânguido, os braços frouxos. Mas a ideia de Jorge vinha então outra vez fustigá-la como uma chicotada. Erguia-se bruscamente, passeava pelo quarto toda nervosa, com uma vaga vontade de chorar..