—
Que teremos nós agora? Está com as cócegas.
Desceu. Voltou com o regador, muito enfastiada:
—
Quer mais água! Olha a mania; pôs-se agora a chafurdar à meia-noite!
Sempre a gente as vê. .
Foi encher o regador, e enquanto a água da torneira cantava no fundo da lata:
—
E diz que lhe faça amanhã ao almoço um bocado de presunto frito, do salgado. Quer picantes!
E com muito escárnio:
—
Sempre a gente vê coisas! Quer picantes!
À meia-noite a casa estava adormecida e apagada. Fora, o céu enegrecera mais; relampejou, e um trovão seco estalou, rolou.
Luísa abriu os olhos estremunhada; começara a cair uma chuva grossa e sonora; a trovoada arrastava-se, ao longe. Esteve um momento escutando as goteiras que cantavam sobre o lajedo; a alcova abafava, descobriu-se; o sono tinha fugido, e de costas, o olhar fixo na vaga claridade que vinha de fora da lamparina, seguia o tique-taque do relógio. Espreguiçou-se, e uma certa ideia, uma certa visão foi-se formando no seu cérebro, completando-se tão nítida, quase tão visível, que se revirou na cama devagar, estirou os braços, lançou-os em roda do travesseiro, adiantando os beiços secos — para beijar uns cabelos negros onde reluziam fios brancos.
Sebastião tinha dormido mal. Acordou às seis horas e desceu ao quintal em chinelas. Uma porta envidraçada da sala de jantar abria para um terraçozinho, largo apenas para três cadeiras de ferro pintado e alguns vasos de cravos; dali, quatro degraus de pedra desciam para o quintal; era uma horta ajardinada,
muito cheia, com canteirinhos de flores, saladas muito regadas, pés de roseiras junto dos muros, um poço e um tanque debaixo de uma parreirita, e árvores; terminava por um outro terraço assombreado de uma tília, com um parapeito para uma rua baixa e solitária; em frente corria um muro de quintal muito caiado. Era um sítio recolhido, de uma paz aldeã. Muitas vezes Sebastião, de madrugada, ia para ali fumar o seu cigarro.
Era uma manhã deliciosa. Havia um ar transparente e fino; o céu arredondava-se a uma grande altura com o azulado de certas porcelanas e, aqui e além, uma nuvenzinha algodoada, molemente enrolada, cor de leite; a folhagem tinha verde lavado a água do tanque uma cristalinidade fria; pássaros chilreavam de leve com voos rápidos.
Sebastião estava debruçado para a rua, quando a ponteira de uma bengala, passos vagarosos cortaram o silêncio fresco. Era um vizinho de Jorge, o Cunha Rosado, o doente de intestinos; arrastava-se, curvado, abafado num cachené e num paletó cor de pinhão, com a barba grisalha desmazelada, a crescer.
—
Já a pé vizinho! — disse Sebastião.
O outro parou, ergueu a cabeça lentamente.
—
Oh, Sebastião! — disse com uma voz plangente. — Ando a passear os meus leites, homem!
—
A pé?
—
Ao princípio ia na burrita até fora de portas, mas diz que me fazia bem o passeiozito a pé. .
Encolheu os ombros com um gesto triste de dúvida, de desconsolação.
—
E como vai isso? — perguntou Sebastião, muito debruçado para a rua, com afeto.
O Cunha teve um sorriso desolado nos seus beiços brancos:
—
A desfazer-se!
Sebastião tossiu, embaraçado, sem achar uma consolação.
—
Mas o doente, com as duas mãos apoiados à bengala, uma súbita radiação de interesse no olhar amortecido:
—
Ó Sebastião, um rapaz alto, que eu tenho visto todos estes dias entrar pala casa do Jorge, é o Basílio de Brito, pois não é? O primo da mulher? O
filho do João de Brito?
—