Vozes falavam à cancela.
—
Minha senhora — veio dizer Joana baixo — é o primo da senhora que se vem despedir..
Abafou um grito, balbuciou:
—
Que entre!
Os seus olhos dilatados cravavam-se febrilmente na porta. O reposteiro franziu-se; Basílio entrou, pálido, com um sorriso fixo.
—
Tu partes! — exclamou ela surdamente, precipitando-se para ele.
—
Não! — E prendeu-a nos braços. — Não! Imaginei que me não recebias a esta hora, e tomei este pretexto.
Apertou-a contra si, beijou-a; ela deixava, toda abandonada; os seus lábios prendiam-se aos dele. Basílio deitou um olhar rápido, em redor, pela sala, e foi-a levando abraçado, murmurando: — Meu amor! Minha filha! — Mesmo tropeçou na pele de tigre, estendida ao pé do divã.
—
Adoro-te!
—
Que susto que tive! — suspirou Luísa.
—
Tiveste?
Ela não respondeu; ia perdendo a perceção nítida das coisas; sentia-se como adormecer; balbuciou: — Jesus! Não! Não! — Os seus olhos cerraram-se.
Quando a campainha retiniu fortemente às dez horas, Luísa, havia momentos, sentara-se à beira do divã. Mal teve força de dizer a Basílio:
—
Há de ser a Juliana, tinha ido fora. .
Basílio cofiou o bigode, deu duas voltas na sala, foi acender um charuto. Para quebrar o silêncio sentou-se ao piano, tocou alguns compassos ao acaso, e, erguendo um pouco a voz, começou a cantarolar a ária do terceiro acto do Fausto.
— Al pallido chiarore Dei ostri d'oro...
Luísa, através das últimas vibrações dos seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então, ouvindo aquela melodia, uma recordação
foi-se formando no seu espírito, ainda estremunhado: era uma noite, havia anos, em São Carlos, num camarote com Jorge; uma luz elétrica dava ao jardim, no palco, um tom lívido de luar legendário; e numa atitude extática e suspirante o tenor invocava as estrelas; Jorge tinha-se voltado, dissera-lhe:
"Que lindo!" E o seu olhar devorava-a. Era no segundo mês do seu casamento. Ela estava com um vestido azul-escuro. E à volta, na carruagem, Jorge, passando-lhe a mão pela cinta, repetia:
— Al pallido chiarore Dei astri d'oro...
E apertava-a contra si. .
Ficara imóvel à beira do divã, quase a escorregar, os braços frouxos, o olhar fixo, a face envelhecida, o cabelo desmanchado. Basílio então veio sentar-se devagarinho junto dela. Em que estava a pensar?
—
Nada.
Ele passou-lhe o braço pela cinta, começou a dizer que havia de procurar uma casinha para se verem melhor, estarem mais à vontade; não era mesmo prudente ali em casa dela. .
E falando, voltava a cada momento o rosto, soprava para o lado o fumo do charuto.
—
Não te parece que vir eu aqui, todos os dias, pode ser reparado?
Luísa ergueu-se bruscamente; lembrara-lhe Sebastião!. . E com uma voz um pouco desvairada:
—
Já é tão tarde! — disse.
—
Tens razão.
Foi buscar o chapéu em bicos de pés, veio beijá-la muito, saiu.
Luísa sentiu-o acender um fósforo, fechar devagarinho a cancela.
Estava só; pôs-se a olhar em roda, como idiota. O silêncio da sala parecia-lhe enorme. As velas tinham uma chama avermelhada. Piscava os olhos, tinha a boca seca. Uma das almofadas do divã estava caída, apanhou-a.
E com um ar sonâmbulo entrou no quarto. Juliana veio trazer o rol. E já vinha com a lamparina, estava a arranjá-la. .
Tinha tirado a cuia; subiu à cozinha quase a correr. A Joana, que estivera dormitando, espreguiçava-se com bocejos enormes.
Juliana pôs-se a arranjar a torcida da lamparina; os dedos tremiam-lhe; tinha no olhar um brilho agudo; e depois de tossir, devagarinho, com um sorriso para Joana:
—
E então a que horas veio o primo da senhora?
—