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Tenho-o dito por toda a parte. É de muita caridade. Um criado de Vossência!

E afastou-se comovido.

Luísa fora logo, com efeito, ver D. Felicidade. Tinha uma luxação simples; nos quartos da Silveira, com o pé em compressas de arnica, cheia de terror de

perder a perna, passava o dia rodeada de amigas, chorando-se, saboreando os mexericos do recolhimento, e debicando petiscos.

Apenas alguém entrava para a ver, redobrava de exclamações e de queixas; vinha logo a história miúda, incidentada, prolixa da desgraça; ia a descer, a pôr o pé no degrau; escorregara; sentiu que ia a cair; ainda se sustentou, e pôde dizer: "Ai, Nossa Senhora da Saúde!" Ao princípio a dor não foi grande; mas podia ter morrido; tinha sido um milagre!

Todas as senhoras concordavam que era realmente um milagre. Olhavam-na compungidas, e iam ao coro alternadamente prostrar-se, e pedir aos santos especiais o alívio da Noronha!

A primeira visita de Luísa foi para D. Felicidade uma consolação; deu-lhe melhoras; porque se ralava de estar ali de cama, sem saber notícias dele, sem poder falar dele!

E nos dias seguintes, apenas ficava só no quarto com Luísa, chamava-a logo para a cabeceira, e num murmúrio misterioso: tinha-o visto? Sabia dele? — A sua aflição era que o Conselheiro não soubesse que ela estava doente, e não lhe pudesse dar aqueles pensamentos compassivos a que o seu pé tinha direito, e que seriam um conforto para o seu coração! Mas Luísa não o vira —

e D. Felicidade, remexendo a chazada, exalava suspiros agudos.

As duas horas Luísa saía da Encarnação e ia tomar um trem ao Rossio: para não parar à porta do Paraíso com espalhafato de tipoia, apeava-se ao Largo de

Santa Bárbara; e fazendo-se pequenina, cosida com a sombra das casas, apressava-se com os olhos baixos, e um vago sorriso de prazer.

Basílio esperava-a deitado na cama, em mangas de camisa; para não se enfastiar, só, tinha trazido para o Paraíso uma garrafa de conhaque, açúcar, limões — e com a porta entreaberta fumava, fazendo grogues frios. O tempo arrastava-se; via a todo o momento as horas, e sem querer ia escutando, notando os ruídos íntimos da família da proprietária que vivia nos quartos interiores: a rabugem de uma criança, uma voz acatarroada que ralhava, e de repente uma cadelinha que começava a ladrar furiosa. Basílio achava aquilo burguês e reles; impacientava-se. Mas um frufru de vestido roçava a escada e os tédios dele, bem como os receios dela, dissipavam-se logo no calor dos primeiros beijos. Luísa vinha sempre com pressa; queria estar em casa às cinco horas, e era um estirão depois! Entrava um pouco suada, e Basílio gostava da transpiraçãozinha tépida que havia nos seus ombros nus.

E teu marido? — perguntava ele. — Quando vem?

Não fala em nada. — Ou então: — Não recebi carta, não sei nada.

Parecia ser aquela a preocupação de Basílio, na alegria egoísta da posse recente. Tinha então carícias muito extáticas; ajoelhava-se aos pés dela; fazia voz de criança:

Lili não ama Bibi..

Ela ria, meio despida, com um riso cantado e libertino.

Lili adora Bibi!. . É doida por Bibi!

E queria saber se pensava nela; o que tinha feito na véspera. Fora ao Grémio; jogara uns robbers, viera para casa cedo; sonhara com ela. .

Vivo para ti, meu amor, acredita!

E deixava-lhe cair a cabeça no regaço, como sob uma felicidade excessiva.

Outras vezes, mais sério, dava-lhe certos conselhos de gosto, de toilete: pedira-lhe que não trouxesse postiços no cabelo, que não usasse botinas de elástico.

Luísa admirava muito a sua experiência do luxo; obedecia-lhe, amoldava-se suas ideias: — até afetar, sem o sentir, um desdém pela gente virtuosa, para imitar as suas opiniões libertinas.

E lentamente, vendo aquela docilidade, Basílio não se dava ao incómodo de se constranger; usava dela, como se a pagasse! Acontecera uma manhã escrever-lhe duas palavras a lápis que não podia ir ao Paraíso, sem outras explicações!

Uma ocasião mesmo não foi, sem a avisar — e Luísa achou a porta fechada.

Bateu timidamente, olhou pela fechadura, esperou palpitante — e voltou muito desconsolada, quebrada do calor, com a poeirada nos olhos, e vontade de chorar.

Não aceitava o menor incómodo, nem para lhe causar um contentamento.

Luísa tinha-lhe pedido que fosse de vez em quando aos domingos à sua casa, passar a noite; viriam Sebastião, o Conselheiro, D. Felicidade quando estivesse melhor; era uma alegria para ela, e depois dava às suas relações um ar mais parente, mais legítimo.

Mas Basílio saltou:

O quê! Ir cabecear de sono com quatro caturras. . Ah! Não!. .

Mas conversa-se, faz-se música. .

Merci! Conheço-a, a música das soirées de Lisboa! A Valsa do Beijo e o Trovador. Safa!

Depois duas ou três vezes falara de Jorge com desdém. Aquilo ofendera-a.

— dizia.

Ultimamente mesmo, quando ela entrava no Paraíso, já não tinha a delicadeza amorosa de se levantar alvoroçado: sentava-se apenas na cama, e tirando preguiçosamente o charuto da boca:

— Ora viva a minha flor!

E um ar de superioridade quando lhe falava! Um modo de encolher os ombros, de exclamar: "Tu não percebes nada disso!" Chegava a ter palavras

cruas, gestos brutais. E Luísa começou a desconfiar que Basílio não a estimava, apenas a desejava!

Ao princípio chorou. Resolveu explicar-se com ele, romper se fosse necessário. Mas adiou, não se atrevia: a figura de Basílio, a sua voz, o seu olhar dominavam-na; e acendendo-lhe a paixão tiravam-lhe a coragem de a perturbar com queixas. Porque estava convencida então que o adorava; o que lhe dava tanta exaltação no desejo, se não era a grandeza do sentimento?. .

Gozava tanto, o amava muito!. . E a sua honestidade natural, os seus pudores refugiavam-se neste raciocínio subtil.

Ele tinha às vezes uma secura áspera de maneiras, era verdade; certos tons de indiferença, era certo.. Mas noutros momentos, quantas denguices, que tremuras na voz, que frenesi nas carícias!. . Amava-a também, não havia dúvida. Aquela certeza era a sua justificação. E como era o amor que os produzia, não se envergonhava dos alvoroços voluptuosos com que ia todas as manhãs ao Paraíso!

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