"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » Portuguese Books » ,,O Primo Basílio'' - de Eça de Queirós

Add to favorite ,,O Primo Basílio'' - de Eça de Queirós

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

Eu? Graças a Deus, nunca me senti tão bem.

Como a veio tão calada. .

A malucar cá por dentro. . A gente nem sempre está para grulhar.

Apesar de serem nove horas não quisera acordar a senhora. Deixa-a descansar, coitada! — disse. Foi em pontas de pés encher devagarinho a bacia grande do banho, no quarto; para não fazer ruído, sacudiu no corredor as saias, o vestido da véspera: e os seus olhos brilharam avidamente quando sentiu na algibeirinha um papel amarrotado! Era o bilhete que Luísa escrevera a Basílio: "Por que não vens?. . Se soubesses o que me fazes sofrer!. ." Teve-o um momento na mão, o beiço, o olhar fixo num cálculo agudo; por fim

tornou a metê-lo na algibeira de Luísa, dobrou o vestido, foi estendê-lo com muito cuidado na poltrona.

Enfim, mais tarde, sentindo o cuco dar horas, decidiu-se a ir dizer a Luísa, com uma voz meiga:

— São dez e meia, minha senhora!

Luísa, na cama, tinha lido, relido o bilhete de Basílio: Não pudera — escrevia ele — estar mais tempo sem lhe dizer que a adorava. Mal dormira! se de manhã muito cedo para lhe jurar que estava louco, e que punha a sua vida aos pés dela. Compusera aquela prosa na véspera, no Grémio, às três horas, depois de alguns rubbers de uíste, um bife, dois copos de cerveja e uma leitura preguiçosa da ilustração. E terminava, exclamando: — "Que outros desejem a fortuna, a glória as honras, eu desejo-te a ti! Só a ti, minha pomba, porque tu és o único laço que me prende à vida, e se amanhã perdesse o teu amor, juro-te que punha um termo, com uma boa bala, a esta existência inútil!" — Pedira mais cerveja, e levara a carta para a fechar em casa, num envelope com o seu monograma, porque sempre fazia mais efeito.

E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saia delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora

tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!

Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela. . Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma tranquilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve, o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já não se vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso.

Foi-se ver ao espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento húmido no olhar — seria verdade então o que dizia Leopoldina, que não havia como uma maldadezinha para fazer a gente bonita?

Tinha um amante, ela!

E imóvel no meio do quarto, os braços cruzados, o olhar fixo, repetia: "Tenho um amante!" Recordava a sala na véspera, a chama aguçada das velas, e certos silêncios extraordinários em que lhe parecia que a vida parara, enquanto os olhos do retrato da mãe de Jorge, negros na face amarela, lhe estendiam da parede o seu olhar fixo de pintura. Mas Juliana entrou com um tabuleiro de roupa passada. Eram horas de se vestir. .

Que requintes teve nessa manhã! Perfumou a água com um cheiro de Lubio, escolheu a camisinha que tinha melhores rendas. E suspirava por ser rica!

Queria as bretanhas e as holandas mais caras, as mobílias mais aparatosas, grossas joias inglesas, um cupê forrado de cetim.. Porque nos temperamentos sensíveis as alegrias do coração tendem a completar-se com as sensualidades do luxo; o primeiro erro que se instala numa alma até aí defendida, facilita logo aos outros entradas tortuosas — assim, um ladrão que se introduz numa casa vai abrindo sutilmente as portas à sua quadrilha esfomeada.

Subiu para o almoço, muito fresca, com o cabelo em duas tranças, em roupão branco. Juliana precipitou-se logo a fechar as janelas, porque apesar de não estar calor, as portadas cerradas sempre davam mais frescura! E, vendo que lhe esquecera o lenço, correu a buscar-lhe um, que perfumou com água-de-colónia. Servia-a com ternura. Viu-a comer muitos figos:

Não lhe vão fazer mal, minha senhora! — exclamou quase lacrimosamente.

Andava em redor dela com um sorriso servil, sem ruído; ou em frente da mesa, com os braços cruzados, parecia admirá-la com orgulho, como um ser precioso e querido, todo seu, a sua ama! O seu olhar esbugalhado apossava-se dela.

E dizia consigo:

"Grande cabra! Grande bêbeda!"

Luísa, depois do almoço, veio para o quarto estender-se na poltrona com o seu Diário de Noticias. Mas não podia ler. As recordações da véspera redemoinhavam-lhe na alma a cada momento, como as folhas que um vento de outono levanta a espaços de um chão tranquilo; certas palavras dele, certos ímpetos, toda a sua maneira de amar. . E ficava imóvel, o olhar afogado num fluido, sentindo aquelas reminiscências vibrarem-lhe muito tempo, docemente, nos nervos da memória. Todavia a lembrança de Jorge não a deixava; tivera-a sempre no espírito, desde a véspera; não a assustava, nem a torturava; estava ali, imóvel mas presente, sem lhe fazer medo, nem lhe trazer remorso; era como se ele tivesse morrido, ou estivesse tão longe que não pudesse voltar, ou a tivesse abandonado! Ela mesma se espantava de se sentir tão tranquila. E todavia impacientava-a ter constantemente aquela ideia no espírito, impassível, com uma obstinação espectral; punha-se instintivamente a acumular as justificações: não fora culpa sua. Não abrira os braços a Basílio voluntariamente!. . Tinha sido uma fatalidade; fora o calor da hora, o crepúsculo, uma pontinha de vinho talvez. . Estava doida, decerto. E repetia consigo as atenuações tradicionais: não era a primeira que enganara seu marido; e muitas era apenas por vício; ela fora por paixão. . Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e eram ilustres, admiradas! Rainhas mesmo tinham amantes. E ele amava-a tanto!. . Seria tão fiel, tão discreto! As suas palavras eram tão cativantes, os seus beijos tão estonteadores!. . E enfim que lhe havia de fazer agora? Já agora!. .

E resolveu ir responder-lhe. Foi ao escritório. Logo ao entrar o seu olhar deu com a fotografia de Jorge — a cabeça de tamanho natural — no seu caixilho envernizado de preto. Uma comoção comprimiu-lhe o coração; ficou como tolhida — como uma pessoa encalmada de ter corrido, que entra na frieza de um subterrâneo; e examinava o seu cabelo frisado, a barba negra, a gravata de pontas, as duas espadas encruzadas que reluziam por cima. Se ele soubesse matava. Fez-se muito pálida. Olhava vagamente em redor o casaco de veludo de trabalho dependurado num prego; a manta em que ele embrulhava os pés dobrada a um lado; as grandes folhas de papel de desenho na outra mesa ao fundo, e o potezinho de tabaco, e a caixa das pistolas!. . Matava-a decerto!

Aquele quarto estava tão penetrado da personalidade de Jorge, que lhe parecia que ele ia voltar, entrar daí a bocado. Se ele viesse de repente!. . Havia três dias que não recebia carta — e quando ela estivesse ali a escrever ao seu num momento o outro podia aparecer e apanhá-la!.. Mas eram tolices, pensou. O

vapor do Barreiro só chegava às cinco horas; e depois ele dizia na carta que ainda se demorava um mês, talvez mais. .

Sentou-se, escolheu uma folha de papel, começou a escrever na sua letra um pouco gorda:

Meu adorado Basílio…

Mas um terror importuno tolhia-a; sentia como um palpite de que ele vinha, Era melhor não se pôr a escrever, talvez!. . Ergueu-se, foi à sala devagar, sentou-se no divã; e, como se o contato daquele largo sofá e o ardor das recordações que ele lhe trazia da véspera lhe tivesse dado a coragem das ações amorosas e culpadas, voltou muito decidida ao escritório, escreveu rapidamente:

Não imaginas com que alegria recebi esta manhã a tua carta. .

A pena velha escrevia mal; molhou-a mais, e ao sacudi-la, como lhe tremia um pouco a mão, um borrão negro caiu no papel. Ficou toda contrariada; pareceu-lhe aquilo um mau agouro. Hesitou um momento — e coçando a cabeça, os cotovelos sobre a mesa, sentia Juliana varrer fora o patamar, cantarolando a Carta Adorada. Enfim, impaciente, rasgou a folha muitas vezes em pedacinhos miúdos — e atirou-os para um caixão de pau envernizado com duas argolas de metal, que estava ao canto junto à mesa, onde Jorge deitava os rascunhos velhos e os papéis inúteis; chamavam-lhe "o sarcófago"; Juliana decerto, descuidara-se de o esvaziar no lixo, porque transbordava de papelada.

Escolheu outra folha, recomeçou:

Meu adorado Basílio.

Não imaginas como fiquei quando recebi tua carta, esta manhã, ao acordar. Cobri-a debeijos...

Mas o reposteiro franziu-se numa prega mole, a voz de Juliana disse discretamente:

Está ali a costureira, minha senhora.

Are sens

Copyright 2023-2059 MsgBrains.Com