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Levantaram-se da mesa; algum tempo foi destinado a descansar; Filipe desafiou Augusto para uma partida de gamão e incontinenti foram travar combate na varanda; Filipe derrotou seu competidor em três jogos consecutivos; estavam no começo do quarto, quando tocou uma campainha; os dois estudantes não deram atenção a isso e continuaram: o jogo tornou-se duvidoso; qualquer dos dois podia dar ou levar gamão; Augusto acabava de lançar uns dois e ás, que desconcertaram seu antagonista, quando D. Carolina apareceu e, dirigindo-se ao seu discípulo, disse com engraçada seriedade:

- O senhor não ouviu tocar a campainha?

- Então isso era comigo?

- Sim, senhor, são horas de lição, e espero que para outra vez não me seja preciso chamá-lo.

- Aceito a admoestação, minha bela mestra, mas rogo-lhe o obséquio de consentir que termine esta partida.

- Não, senhor.

- É uma mão de honra!

- Pior está essa!

- Ora, é boa! acudiu Filipe; então quer você...

- Não tenho a dizer-lhes o que quero, nem o que não quero; são horas de lição, vamos.

- E é preciso obedecer, concluiu Augusto, levantando-se.

Daí a pouco estava tudo em via de regra; Augusto, sentado em uma banquinha aos pés de sua bela mestra, escutava, com os olhos fitos no rosto dela, as explicações necessárias. Às vezes D. Carolina não podia conservar imperturbável sua afetada gravidade e então os sorrisos da bela mestra e do aprendiz graciosamente se trocavam; ela se mostrava mais pacífica e ele menos atento do que haviam prometido, porque era já pela quarta vez que a bela mestra recomeçava suas explicações e o aprendiz cada vez a entendia menos.

Filipe apareceu na sala, pronto para ir caçar, e convidou o seu amigo para com ele partilhar do mesmo prazer. Todo o mundo adivinha que Augusto disse que não; ele poderia responder que não queria caçar, porque estava pescando, mas contentou-se com dizer:

- Minha bela mestra não dá licença.

- Tome cuidado no modo de pegar nessa agulha!... gritou ela com mau modo e sem se importar

com Filipe.

- Está bem, disse este, saindo; eu não os posso aturar.

E depois acrescentou, sorrindo-se:

- Fique-se aí, Sr. Hércules, aos pés da sua bela Onfale!

- Ouviu o que ele disse? perguntou Augusto.

- Já lhe tenho repetido três vezes que não é assim que se pega na agulha.

- Ora, minha senhora...

- Ora, minha senhora!... ora, minha senhora! eu não sou sua senhora, sou sua mestra.

- Minha bela mestra!

- Digo-lhe que já me vai faltando a paciência. O senhor não atenta no que faz!... já tem quatro vezes rebentado a linha e é a décima segunda que lhe cai o dedal.

- Não se exaspere, minha bela mestra, eu o vou apanhar e não cairá mais nunca.

Augusto curvou-se e ficou quase de joelhos diante de D. Carolina; ora, o dedal estava bem junto dos pés dela e o aprendiz, ao apanhá-lo, tocou, ninguém sabe se de propósito, com seus dedos em um daqueles delicados pezinhos; esse contato fez mal; a menina estremeceu toda. Augusto olhou-a admirado, os olhos de ambos se encontram e os olhos de ambos tinham fogo. Um momento se passou; o sossego se restabeleceu.

- Já não posso mais! exclamou a bela mestra; rebentou o senhor pela quinta vez a linha; não dá um ponto que preste; não há outro remédio...

E, dizendo isto, lançou uma das mãos à orelha do aprendiz, que de súbito deu um grito e acudiu com as suas. Ora, essas mãos se encontraram, debateram-se, e nesse ensejo os dedos da bela mestra foram docemente apertados pela mão do aprendiz. Novo fogo de olhares! que aproveitável lição!...

- Menina, tenha modos!... o Sr. Augusto não é criança, exclamou a Sra. D. Ana, que a dez passos cosia, e que só podia ver a exterioridade do que se passava entre a bela mestra e o aprendiz.

A lição se prolongou até ao meio-dia e mais de mil vezes se repetiu a mesma cena do encontro das mãos; D. Carolina não conseguiu puxar uma só vez a orelha do estudante e o aprendiz não perdeu uma só ocasião de apertar os dedos da mestra. Augusto se comprometeu a apresentar na primeira lição um nome marcado pela sua mão. Tudo foi às mil maravilhas.

O resto do dia se passou como se havia passado o seu princípio para Augusto e D. Carolina.

Eles não se chamaram mais por seus nomes próprios; o amor lhes tinha ensinado outros; eram:

“meu aprendiz”, e “minha bela mestra”.

A madrugada seguinte foi triste, porque presidiu às despedidas do aprendiz e sua bela mestra, mas ainda foi bem doce, porque ambos meigamente se disseram:

- Até domingo!

21

Segundo Domingo: Brincando

com Bonecas (1)

Raiou o belo dia, que seguiu a sete outros, passados entre sonhos, saudades de esperanças.

Augusto está viajando: já não é mais aquele mancebo cheio de dúvidas e temores da semana passada, é um amante que acredita ser amado e que vai, radiante de esperanças, levar à sua bela mestra a lição de marca que lhe foi passada. O prognóstico de D. Carolina, na gruta encantada, se vai verificando: Augusto está completamente esquecido da aposta que fez e do camafeu que outrora deu à sua mulher. Um bonito rosto moreninho fez olvidar todos esses episódios da vida do estudante. D. Carolina triunfa e seu

orgulho de despotazinha de quantos corações conhece deveria estar altaneiro, se ela não amasse também.

Como da primeira vez, Augusto vê o dia amanhecer-lhe no mar; e, como na passada viagem, avista sobre o rochedo o objeto branco, que vai crescendo mais e mais, à medida que seu batelão se aproxima, até que distintamente conhece nele a elegante figura de uma mulher, bela por força; mas desta vez, não como da outra, essa figura se demora sobre o rochedo, não desaparece como um sonho, é uma bonita realidade, é D. Carolina que só desce dele para ir receber o feliz estudante que acaba de desembarcar.

• Minha bela mestra!...

- Meu aprendiz!... já sei que traz nome bem marcado.

- Oh! sempre precisarei que me queira puxar as orelhas.

- Não, eu não farei tal na lição de hoje.

- E se eu merecer?

- Talvez.

- Então errarei toda a lição.

Are sens